O Demónio do Ouro - 1ª parte
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o irmão a procurar algum honesto abrigo para sua infeliz sobrinha.
Vieira <sentiu-se [↑de]fallido de coragem> [↑encarou ainda com intrepidez a suprema desgraça]. A ruina era absoluta e irremediavel. Lettras sacadas, sobre esperanças do capital do Porto, ja não podiam ser pagas. A casa, pouco antes millionaria dos Bearsley, <*ad> <abysmara-se com> estava insanavelmte fallida. Pois, sem <impedimento> [↑pavor] da profundeza da voragem, Manoel Vieira apresentou-se aos banqueiros, <e disse a cada um d’elles> [↑que chamou ao seu escriptorio e disse-lhes], mostrando a carta de John Bearsley:
– Antes de enviar a morte a meu infeliz patrão, com esta carta, venho offerecer á misericordia de qm pode salvar esta familia o meu nome, a minha responsabilide ao pagamento <destas> [↑das] lettras reformadas. <E>/S\ou novo, tenho vinte e <dous> [↑trez] annos, sou robusto, [↑sobrio e saudável;] conto com ms quarenta annos de vida, e uma inflexivel vontade de trabalhar. Confiem, senhores, dos <fu> meus futuros quarenta annos o embolço dos seus creditos, e, por Deus, não abram fallencia aos snres Bearsley!
E, <pondo as mãos debaixo das lagrimas> [↑erguendo as mãos, e com a vista amarada de pranto], queria ajoelhar deante do banqueiro q̃ se lhe pintou mais insensivel.
Convergiram todos a erguêl-o da 2postura 1supplicante<, inscreveram-lhe o nome no registro da matricula commercial, e>. Tão compungidos como convictos da honradez do moço, foram d’ali inscrevel-o
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na matricula dos negociantes, e <divulgar>consolidar-lhe a reputação com a publicidade do credito.
Roberto voltou do campo, e achou pagas umas lettras, outras reformadas, e o gyro commercial no pé de prosperide incompativel com diminutos capitaes. Nos livros das entradas achou as 10:000 libras procedentes do Porto; admirou-se, porém, q̃ seu irmão lhe não houvesse escripto, se não uma simples ordem sobre o Banco de Londres, segundo informaç<oens>/ão\ do <†>/g\uarda-livros.
Desta ignorancia do roubo não foi participante Anna Bearsley. A esposa do consul inglez no Porto, sua amiga de collegio, escrevia-lhe dando-lhe os pezames <pelo> [↑do] des<gosto>[astre] que seus excellentes tios acabavam de soffrer. Esta <carta> [↑missiva] foi entregue á senhora por Mel Vieira, ajuntando-lhe a <supplica> [↑rogativa] [1 negativa] de occultar de seu tio o contheudo da carta, se ella dissesse respeito a catastrophes do commercio.
Na seguinte chegada do navio de Portugal, era impossivel ao guarda-livros subtrahir as cartas, não havendo de mais a mais alguma <sido> da lettra de John, e sendo duas lacradas de preto.
<Anna lançou mão da sua, fitou-lhe a lettra do sobrescripto e a cor do lacre, atirou-se nos braços do tio, e> Manoel Vieira appresentou-as a Roberto, e á sobrinha. Levava o rosto coberto de lagrimas. <Comprehendeu que > O inglez relançou a vista entre as cartas e o moço[1,] que não podia proferir alguma palavra.
– É morto meu irmão! – exclamou o velho, deixando cahir a face no seio
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da sobrinha que o amparára.
– Abra a carta, e leia, snr Vieira – disse Anna Bearsley.
Manoel correu de alto a baixo em um lanço de vista os trez periodos da carta. Os q̃ <disia resp> attribuiam a <morte subita> [↑fulminação apopletica] de John [↑Bearsley] ao roubo das 9:500 libras, omittiu-os, resumindo o contexto em dizer que o snr Bearsley fallecera repentinamente, quando se aprestava para retirar-se pa Londres com a sua caza liquidada. Acrescentou q̃ o seu espolio, reputado em 1:000 libras, havia sido entregue no consulado.
Cansado da vida, e exhausto de animo pa luctar com a desgraça q̃ o encontrára enfraquecido pelas blandicias da fortuna, Roberto afastou-se da actividade commercial, delegou inteiros poderes em Manoel Vieira, e estabeleceu a sua definitiva residencia nos arrabaldes de Londres, <em mais que modesta vivenda> [↑<em> [↑em Westhminster, n’]uma vivenda formosissima, que miss Anna disse ter alugado por alguns annos]. [↑De] <T>/t\odo <seu> seu scismar e velar as noites era cauza o futuro d<e>/a\ <Anna> sobrinha. <*Veo-lhe> Sorriu-lhe alguma vez a idea de a cazar com o guarda-livros; mas dois invenciveis estorvos o impossibilitavam de[1,] se quer, aventurar o pensamento: um, era o [↑modestissimo] destino que Manoel, desde a primeira mocidade, <via> [↑cifrava] no seu anhelado porvir de marido de Eulalia; outro, era saber Roberto que sua sobrinha morreria amando o <homem morto> [↑seu defuncto amado], como ella romantica e britannicamente capitulava Philipe de Chesterfield.
<Quanto> [↑Respectivamente] ao filho do erudito lord, <sabia q̃ se antes> sabia Manoel Vieira quanto lhe doiam os infortunios da familia Bearsley; pois q̃, <sabido> divulgado em Londres o ultimo desastre da caza
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em Portugal, Philippe offereceu a Vieira algumas mil libras do seu patrimonio como socorro ás primeiras urgencias, e sob condição de segredo.
Vieira <contava> [↑fiava] de si <*aproar> o proejar [1 singrar] a náo desarvorada a porto de salvamento. Era um moirejar incessante, <bafejado pela boa estrella que Deus lhe> <alumiado> uma nunca vista energia, sem repouso, sem intercadencia de recreio. As suas economias, involtas na massa do negocio, corriam o perigo de <1 uma> total perda, se os generos exportados para a India continuassem <a dar as pêrdas resultantes> [↑a ser desbaratados, <em> pr effeito] da desordem, e abatimto a que la tinham descido os interesses d<as>/e\ <Companhias> Inglaterra.
A esperança de ir a Portugal buscar Eulalia ia-lhe fugindo, <deixando-lhe> e a pouco e pouco as alegrias <que se lhe prefigura<vam>/das\> preluzidas no decurso da vida, se apagaram. Entrou-lhe na alma o convencimento de que, <apesar dos seus esforços> [↑por demasia de esforço], os braços lhe cançaria[m] contra a torrente que arrastava á fallencia cazas muito ms esteiadas em capitaes e creditos.
Nada obstante, Roberto recebia mais recursos q̃ os precisos, [1 e] a fama da Povoa de Lanhoso continuou a ser liberalmente beneficiada; elle, porem, restringia tão apertadamente as suas despezas que apenas tinha um prato na sua meza e um guarda roupa correspondente á parcimonia da alimentação.
A virtude é como a fé: produz milagres<, se não>. [1§] Prosperavam a olhos vistas as mercancias da caza Bearslei. De Bengala, onde tudo se reputava perdido, liquidára Vieira <uma somma> um subsidio para <amor> remissão da maior parte das lettras, que o velho
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<B>Roberto rasgava, dizendo sempre:
– Documentos de deshonra, libellos difamatorios q̃ não serão lidos sobre o jasigo de teus avós, ma querida sobrinha[1 …] [§] E ajunctára uma vez, quando as sombras da noite do intendimento se iam, a intervalos, espessando[1: §]– Sem espada, <s>/n\em espora de cavalleiro sei eu q̃ heide morrer. <Acabo>[↑Morro], sem dar ao snr de Chesterfield o prazer de ser lancetado nestas veias de plebeu pelo faim de sua excellencia; mas Deus consentirá que eu <m> morra sem dividas para me não parecer com os senhores condes de Chesterfield. Desculpa, ma pobre Anna, estas senis impertinencias do teu caduco tio; e, se me não <desculpas> [↑desculpas], <perdoar>lembrar-te-hei que as <nossas> desgraças vieram a <c>nossa caza na carruagem blazonada desse fidalgo.
Anna <cobriu> levantou os olhos para a face do tio, e murmurou com humildissimo gesto de quem exora:
– Perdoe-me a mim, meu tio. As desgraças não vieram com elle; estavam comigo. Perdi meu pai… que parte teve Philippe no meu maior infortunio? A morte de meu tio [↑John…] foi <um favor> [↑mercê] do ceo q̃ nem todos os infelises alcançam… O perdimto da riqueza ainda o não senti, meu tio. Quando me disiam que eu havia de ser herdeira de trez milhoens, perguntei mtas vezes á ma consciencia: «de q̃ servem trez milhoens?» e hoje pergunto: « q̃ importa não os ter?» Que nos falta, meu tio? Que faríamos nós hoje á riqueza superflua, se a tivessemos?
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O ancião sorriu jubilosamente, e murmurou:
– És <um anjo> [↑a creança] a corrigir as cans de um velho, que, tendo ja os pes na cova, quer lá resvalar por uma rampa de oiro… És um anjo, ma querida mestra da vida, da paciencia e da religião. Assim, queres q̃ eu morra tranquillo do teu destino. [1 destino… Morrerei…] Irei deste mundo sabendo q̃ hasde viver com pouco, ma pobre menina. Olha que o nosso Manoel me disse hontem q̃, depois da liquidação de Bengala, suppõe q̃ o teu futuro pode ser segurado com um dotezinho de 6:000 libras. Sei q̃ <se> pode ser muito rico <se se tem> [↑qm possue] o thesouro <infindo> das joias q̃ tens em tua alma. A proposito de joias, menina, ha mto q̃ te não vi infeitada com alguma das tuas! Lá estão as de tua mãe, e as de tua avó… [d]a ma sancta mãe… <Aq>Deixa-me ver aquella manilha q̃ tem o retrato d’ella… Ha bons trinta annos que o não vi… [Quero dizer-lhe o ultimo adeus…]
Miss Anna Bearsley foi ao seu quarto, e tirou da gavetinha de um contador o bracelete com o retrato esculpido [1 colorido] em marfim. Voltou e <apresentou> offereceu-o ao velho, que o beijou <com> enternecida<s>/m\[te] <lagrimas>.
– E as outras joias, Anna? Por que m’as não trouxeste?! Ha la tantas memorias, ligadas <a um> á vida de teus pais e ate á minha… Vai buscal-as…
– As joias, meu tio, é tudo isto. São esta othomana, estas alcatifas, aquellas jarras do Japão, o parque que meu tio todas as <noites>[↑tardes] passeia, as arvores onde as avesinhas de madrugada o saudam, toda esta bella cazinha, q̃ parece um brilhante engastado em
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esmeraldas… Ha la joia mais linda!.
– Que queres dizer, Anna?
– Que vendi as joias inuteis e comprei esta cazinha onde meu tio está recobrando a sua saude, a serenidade que estas arvores nos ensinam, e o desapêgo das <dem> coisas sobejas, como são a terra, q̃ se chama oiro, a terra q̃ se chama prata, e o carvão q̃ se chama brilhante. Aqui tem as mas joias. São esta, por q̃ tem o retrato de ma avó, <com> [↑de] quem aprendi a rezar <o>/a\ <Padre nosso p> [↑oração com] a <qm>/q\ua<p>/l\ pedimos a Deus o pão de cada dia, e não os milhoens acumulados, em qto ha tantos pobres que nem pa cada dia tem um pão… Não me ralha, meu querido tio<, pois não>?
Roberto, estreitando a sobrinha contra o seio arquejante, soluçava, e mentalmte agradecia a Deus as desventuras q̃ o trouxeram áquella hora de sancta alegria.
XIII
Philippe de Chesterfield sahiu de Inglaterra, quando o próprio brio o arguiu de
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se andar d<†>/e\sprimorosamente a requestar a mulher q̃ lhe dava liçoens de dignidade. Elle, que tão florecida mocidade tivera e tantas invejas arrastara apoz os faceis triumphos do 2brilhante 1vicio <dos> [↑em] fidalgos de sua bitola, descahira, em idade tão vigorosa ainda, <em> [↑n’uns] aborrimentos [1 aborrecimentos] d’aquella mysantropia ingleza, <que> doença deploravel que o suicidio nos dá a perceber como <crize *mora> a terribilissima crize da saciedade dos prazeres <e da peçonha>. Dos passados amores do filho de lord Chesterfield referiam-se maravilhosas [1 estupendas] proezas. Entre as mais formosas amantes q̃ elle assoalhara á crytica das familias escandalisadas de Londres, nomeava-se uma franceza cham<d>/a\da Bert[↑h]a de Nieuport, que o seguira de Pariz. Esta dama usava em Londres carruagem com seu proprio brazão, e não <mentia nos> falsificava os seus direitos heraldicos, por que se<us>/u\ pa<es>/i\ primavam [1 primava] entre os fidalgos da Picardia, e havia sido camarista na côrte de Luiz XIV. Acrescentavam os mais a ponto informados que Berta era cazada com <um> [↑certo] conde de annos mais adiantados que os convenientes á morigeração de uma esposa educada na convivencia das filhas do Regente, duque de Orleans. Lamentavam as honradas matronas inglesas que uma senhora de tão fina origem não tivesse a vulgar virtude de entreter a sua mocidade, applacando as dores da gôta de seu marido com as delicias do canto e da muzica, prendas <em> [↑de] q̃ a franceza era <admiravel>magistralmente dotada.
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Quando Philippe norteou sua vida tempestuosa para o remanso do matrimonio, Bert<a>/h\a appareceu sosinha em publico, uns dias; e, não volvidos muitos, foi vista com um filho do <duq>conde de Burlington, rapaz de vida estragada e estragadissimo patrimonio. Esta nova phase da condessa <Berta> de <Nieuport> [↑Beaulieu] foi renovada e renovadissima no prazo de dezoito mezes com tantas variedades de librés, segundo a variedade dos proprietarios ephemeros, que deixamos como infadonha e de nenhum modo original nem edificante <essa> a averiguação desses casos.
De repente, porém, desappareceu de Londres a condessa pariziense.
Este episodio da mocidade de Philippe seria excrecencia nesta narrativa, se não <viesse> [↑houvesse], ao diante, <ped> a necesside de retroceder e explical-o.
No começo do capitulo dissemos q̃ Chesterfield sahira de Londres. Acompanhal-o-hemos mais depressa do q̃ então se viajava. Por 17<81>/74\ sabemos q̃ elle estava em Lisboa, e em 17<82>/75\ no Rio de Janro, <d’onde se fez de> [↑onde embarcou] para o [↑Grão-]Pará, com o intento de visitar uma sua irman, tambem filha natural do conde Lord <de> Chesterfie<d>/l\d e de uma dama franceza q̃ não era mãe de Philippe. Desta variedade de mães deprehende-se q̃ o defuncto <l>/L\ord tivera quinhão dobrado dos costumes soltos da França do seu tempo, e ensinara o filho tanto com as Cartas como com
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o exemplo.
O cunhado de Philippe era inglez; chamava-se Ricardo <de> Broseley, e descendia de antigos fidalgos da cidade do seu appellido, que haviam emigrado, fugindo á ferocide de Cromwell, como partidarios de Carlos I.
O primeiro foragido estabelecera-se nas margens do Amazonas. Voltou a Inglaterra, depois da restauração da monarquia, revindicou [1 reivindicou] parte dos seus haveres confiscados pelo Protector, e expatriou-se outra vez para o Pará.
<Os filhos desse > [Como] <A>/a\lguns dos descendentes deste inglez <foram educados> [↑<†> se <educ>[↑cre]aram] em Inglaterra, <Isab> Ricardo <de> Broseley la foi tambem educado; e por que era gentil de sua pessoa e afamado de rico proprietario nas margens do Acará, logrou obter a mão e avultado dote de Isabel <de> Chesterfield.
Os Broseley no Pará eram conhecidos dos portuguezes por Brossens, <vocabulo> pronuncia adulterada no lapso de cem annos, e como taes os conhecia o bispo paraense [D.] Fr [1Fr.] João de S. Jose Queiroz.(.)
(.) Em 1761 escrevia o mencionado bispo o segte á cerca de Guilherme Brossem (William Broseley) <pai> [↑tio] de Ricardo: «Entrando pelo Acará dentro, rio alegre e de boas terras… chegamos a casa de Guilherme Brossem, visitamos a sua capella onde ouvimos missa, a qual foi cantada pelas
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Apenas Philippe chegou á encantadôra vivenda [↑(que lá chamavam sitio)] de sua irman Isabel, lhe disse ella:
– Se tivesses chegado ha <quize dias> [↑um mez] encontrarias uns hospedes interessantissimos, e não sei até se folgarias de ver uma
suas indias e mamelucas a quatro vozes bem ajustadas, e no fim varias cantatas devotas e de edificação, sobre o q̃ lhe fizemos uma pequena pratica, em louvor do canto honesto, e ao mmo tempo invectiva contra o lascivo das sarabandas e modas do tempo. Aqui comi a primeira vez tartaruga de varios modos concertada, etc.»
Faz o digno prelado encarecidos elogios aos acepipes da tartaruga, diz que na sua viagem não <se> lhe deparou o acaso intrigas galantes com q̃ lardeie de interesse romanêsco a sua visita, e prosegue:
«... Caso notavel sel-o-ha a piedade deste honrado homem (Guilherme Brossem), a qm Deus N.S. deu uma semelhante consorte, negou-lhes filhos para que podessem crear os outros expostos de seus pais: em fim, é a casa de Brossem uma roda de engeitados, e sempre prompta pa este bemfazer, q̃ se exercita em toda a linha de piede ou genero, instruindo na fé e devoção aos meninos, e sustentando-os até lhes dar modo de vida honesto
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gentil dama que eu presumo não ser simples comparsa no longo drama dos teus amores…
– Pois é possivel que até <do>/ao\ [↑Grã-]Pará se estendam as reliquias dos meus desvarios!? – perguntou Philippe sorrindo – Como se chama essa tua hospeda?
– Porcia O’ Neill.
– Oh! que nome! cheira-me a romana!. Porcia… O’ Neill!... Nunca ouvi tal nome!... O’ Neill! este [1 esse] appellido é irlandez.
– Irlandez é o marido; ella é franceza...
– Ah! sim? franceza! e é Porcia?! – atalhou ironicamente Philippe.
– Veja la, snr Philippe – acudiu a irman com risonha severidade – lembre-se que eu nasci em França, e que sua mãe tambem era franceza…
– Estou-me lembrando agora d’isso… Continua, ma querida Isabel, como se chama o marido?
– Josuah O’ Neill.
– Que é elle?
– Um viajante riquissimo, que arrasta o seu tedio sobre <alcatifas> [↑estrados] de ouro e diamantes.
– Upa! andas a ler o Shaskespiere [1 Shakspeare], minha irman?
– <O> Ricardo estava <no Pará> [↑em Bellem, <q>] quando elles desembarcaram; e, ouvindo-os fallar inglez, offereceu-lhes o seu prestimo, q̃
sendo aliás o tracto da sua casa mto civil e elle um aceiadissimo ancião. (Memorias de Fr. João de S. Jose Queiroz, bispo do Grão-Pará. Porto 1868.)27
27 As Memorias deste Bispo foram publicadas por Camilo: Memórias de Fr. João de S. Joseph Queiroz Bispo do Grão Pará, com uma extensa introdução e notas illustrativas por Camillo Castello-Branco, Porto, Typ. da Liv. Nacional, 1868. Os passos que cita são transcrição rigorosa de excertos das páginas 209 a 211. Note-se a emenda no fl. 110 de pai para tio, de modo a preservar a coerência da narrativa ficcional (a personagem Ricardo Brossem) com a da narrativa histórica: William Brossem não podia ser pai de Ricardo porque tivera um casamento estéril, como transcreve Camilo, atento ao valor moral que a educação dos órfãos adquire no romance sobre Manuel Vieira e João Veríssimo.
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o viajante aceitou agradavelmte. Estiveram alguns dias na cidade, e vieram hospedar-se em nossa caza. Logo que ella, a sos commigo, me disse q̃ era franceza, fallei-lhe a sua lingua, e <disse>contei-lhe q̃ tambem [eu] tinha nascido em França. Depois, conversamos de Londres <e>/.\ <p>/P\erguntei-lhe se conhecia algumas pessoas das nossas relaçoens; e a primeira q̃ ella nomeou foi o meu querido Philippe Chesterfield. [1§] «É meu irmão!» exclamei eu. – Seu irmão! – disse ella com a voz alterada; e, passados instantes, pediu-me licença para me abraçar, e rogou-me <instantemte> [↑calorosamte] q̃ não proferisse o teu nome em prezença do marido. E, desde q̃ tivemos esta curta conversação, notei q̃ Porcia estava sempre concentrada e melancolica. Uma vez instei-lhe q̃ me dissesse se eu involuntariamte a magoara a ponto de a ver como <repêsa> [↑arrependida] da sua franqueza. Respondeu-me. «Não, ma senhora; eu soffro por q̃ não tenho a coragem de acabar com esta <vida> [↑existencia] que me dóe como um remorso á mulher que cobrisse de eterno opprobrio seus pais e seus irmãos. Sei que a senhora terá a delicadeza de me não perguntar mais nada da ma vida». [1§] Tens alguma idea de quem seja esta mulher?
– Parece-me que se está formando uma indecisa conjectura no meu espirito;[↑ – volveu o meditativo Philippe] [1 — ] mas, isso de Porcia é nome inventado, se a mulher é a que se está desenhan-
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do ao meu espirito. Descreve-m’a quanto á figura. Já disseste que era bella? não me recordo…
– É bella; mas denota que a melhor estação da sua belleza passou. Representa trinta annos, apezar de me dizer q̃ tem vinte e quatro.
– É alta?
– Muito alta, e magra, olhos pretos, mas pequenos e <cheios> [↑quebrantados] de melancolia, [1;] tem na face esquerda um signal de cabellos encaracolados q̃ lhe dá muita graça…
– Basta. Ja sei quem é.
– Quem é?
– Não te posso dizer mais nada a respeito dessa mulher, ma irman. Disse-te ella q̃ era desgraçada? não mentiu; olha, porém, Isabel, que não <fui> [↑sou] eu <quem a> o responsavel dos seus dissabores… Mas, sancto Deus! como veio Bert<a>/h\a de Nieuport ao Pará? Quem é esse homem opulento que lhe chama esposa, tendo ella vivo o marido, o conde de <de> Beaulieu? – proseguiu Philippe em concentrado monologo, que Isabel lhe ouvia com espanto – O’ Neill! nenhum dos seus amantes em Londres se chamou O’ Neill!<1...>
– Amantes! – interrompeu Isabel – então é uma aventureira que eu tive em ma caza?
– Não tanto assim; minha irmã: é uma victima dos cazamentos <disparata> desiguaes na idade e nas indoles; é uma mulher, q̃ poderia ser virtuosa como
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tu, se a deixasse[m] escolher marido como tu escolheste… Mas… não me disseste q̃ o marido era mto rico?
– Tanto que está resolvido a comprar em <Macapá uma herdade que lhe custa *25:000 libras.> <[↑Obidos]> <[↑Macapá]> [↑Bragança o mais rico sitio, e o convento que foi dos jesuitas pa reedifical-o em palacio.28] Os brilhantes que ella tinha nos pulsos e no pescoço talvez valessem <outro tanto>[↑mais de <†>/5\:000 libras.] Quando aqui entrou <dor> e viu a bellesa das [1 da] noss<as>/a\ vivenda, [↑e os engenhos] [1 o os engenhos,] disse [↑elle] que daria <*20>/15\:000 libras<1,> pr ella [1 por tudo], se se vendesse.
– É novo esse homem?
– Não [↑é novo:] hade ter mais de quarenta [↑e cinco] annos; ja tem o bigode grisalho, e mtas rugas á volta dos olhos. A cara é sinistra. Diz o Ricardo q̃ dentro d’aquelle homem está uma historia que valia a pena explorar, por q̃, ás vezes, iamos dar com elle sosinho, <dentro do bosque> [↑imboscado na floresta], absorto em si, e com os olhos espasmodicos, como um homem que estivesse vendo a sombra das suas victimas. E então ella, Philippe, parecia encaral-o com terror, e olhar aterrada tambem para os brilhantes das manilhas. Eu pensava n’isto; mas não lhe dava pêzo; agora, porém, depois de te ouvir, começo a crer que ha estranhos successos ligados á vida de ambos.
– Onde estão elles? – perguntou o irmão.
– A ultima carta q̃ o Ricardo recebeu é enviada d<a>/e\ <Villa Vistosa da Madre de Deus> <[↑na *guajara29]> [↑ Ourem]<,>/;\e [↑la] disia que
28 Sobre o convento dos jesuitas em Bragança (antiga Caité) informou-se Camilo com Fr. João de Queirós (v. Memorias, p. 192). Dele teve notícia tambem acerca da compra por leigos das instalações dos jesuitas expulsos (idem, p. 208).
29 Rio da região (v. Noronha, Roteiro da Viagem da Cidade do Pará, p. 21). Leitura duvidosa, pareceria melhor guyana, mas tal leitura não faria sentido no contexto a não ser por erro de Camilo semelhante a Canada/Calcuttá (fl. 82).
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<1 que> <ia ver> [↑estava a sahir pa examinar] as propriedades de <Macapá> [↑Bragança].
– Pois, ma irman, por satisfazer a tua curiosidade vou viajar [↑pr esse] <Amazonas> [↑Cahité] assima até encontrar os taes hospedes.
<Ricardo>
– Lembra-te que ella me pediu q̃ não proferisse o teu nome diante do marido. Não vás tu aggravar-lhe o seu infortunio…
– Responsabilisa-se a minha prudencia pela probidade do coração, que, a respeito dessa mulher, apenas pode reviver no sentimento da piedade.
<V>/D\ecorridos poucos dias de repouso, a canôa de Philippe Chesterfield vogava, <no rio Bojaru, em pra> balanceando-se sobre os cachoens do confluente perigoso dos rios Guama e Mojú, mareada por dez robustos indios.
XIV
As margens daquelles rios, arterias pujantes <onde> [↑em] que arfam as ondas do Amazonas, são ensombradas de arvores
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giganteas, que fazem tristeza e <terror> [↑pavor]. O homem ali vê-se tão pequeno, tão verme a pascer-se nos sucos de seu proprio coração, que chega a sentir <o desgos> [↑enojo] das <parcas> chimeras pr onde se quiz <sobrepor> [↑avantajar] <á>/a\[o] <vulgaridade> [↑cummum] de sua especie. E aquelle que ali chegou, ido das cidades onde toda a grandeza, excepto a da virtude obscura, é <fan>convencional e fantastica, esse, á semelhança do <amall> <de> [↑Philippe] Chesterfield, entrou-se de amargura immensa, e, em meio d’aquellas vidas colossaes, da ave enorme e da arvore que <roça> [↑topeta30] as nuvens com as suas <grimpas> [↑franças], cuida que á volta de si tudo é <†> [↑o infinito] vacuo da morte. As solidoens magestosas são essas em q̃ o homem verte lagrimas humildes sobre os andrajos da sua purpura de rei da creação. Ainda, se nos ouvidos d’alma lhe <ressoam> [↑rumorejam] os mil hymnos d’aquelles silencios, – se por de sobre as copas das florestas lhe vai o espirito desferindo vôo em demanda de Deus, a sua alegria pode ser grande como a do eremita de Isthria que nas solidoens profundas encontrava a paz, as lagrimas <,>/e\ a <purifica> morte que <tão crues>/tanta crueza\ tem se a meditamos sem a desejarmos.
O sentimento de Philippe era doloroso quando <subia> [↑cortava] a corrente do rio, escutando o trapejar monotono dos remos, e ouvindo o tanger das sinetas, no <avanço> [↑diluculo] da manhan, e <n>/a\o <enpu> cahir da noute, <nas> [↑<pr > n’aquellas] egreginhas alvejantes, la ao cabo das enseadas [↑ou garapés] em que o rio <se recurvava> [↑bracejava].
30 topeta: Camilo esqueceu-se de cortar a haste do t, de modo que pode ler-se lopeta.
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Entreluzia-lhe, por noite, no cerrado dos bosques, <o ray> vestida do raio da lua q̃ se espelhava nas aguas rebalsadas, a imagem de Anna Bearsley, a sua <adorada, > [↑3e adorada] 2dolorosa 1illusão.
<A humana [↑2textura] 1deliciosa que ella>
Aprazia-lhe, entre as reminiscencias manchadas, ver aquella 2pura 1mulher, a unica sem macula nas suas paixoens. Bert<a>/h\a de Nieuport e as <dema> outras <d> eram a vingança de <uma> [↑Anna] <q> sa<cri>crificada ao orgulho da raça, á fantasia dos fidalgos que <†> <se>/o\ julgaram desdoirado pela suspeita de Roberto, e venderiam ao <burguez> [↑judeu], <em apertos> [↑na carencia] de cem libras <fall> <necessareas> para um cavallo de avós conhecidos, as vinte e cinco caveiras de seus avós, 2tambem 1conhecidos. Na penumbra d<e>/o\ <um> ideal luminoso de Anna Bearsley, todas as suas affeiçoens lhe davam tedio <de estar>. Eram as brutalidades sensuaes, <o>/a\ <comsum> dissipação das riquezas da alma juvenil, o corrompimento do melhor sangue, a relaxação das cordas q̃ mais tensamte mantém a harmonia da pureza moral com a incontaminação dos sentidos. Estas ideas pungiam-no mais quando sentia no peito os rebates da infermidade, as dores agudas q̃ precedem o desfibramto dos pulmoens ou a distenção das arterias por onde o sangue <†>/a\venenado ou empobrecido vai depositando sedimentos mortiferos.
Em conjunctura de socêgo de espirito, Philippe, <*and> á imitação dos seus patricios, tão caroaveis das bellas imprevisoens [1 impressões] da natureza americana, <*seria <pela> por> <*anda> jubilaria ás margens <dos rios <que and> pr> do Amazonas; porém, levado áquellas paragens para esquecer-se, <tranzido> [↑magoado] de saudades, <que se *não confessam> <sem haver fructo> sem esperar convertel-as na alegria de qm as offerece á mulher pr
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quem as soffre, o inglez perguntava á sua curioside de [1se] reconhecer [↑em] Porcia O’ Neill <se nao> a sua despresivel amante Bertha de Nieuport <se> não seria envilecer-se o procural-a <quando pe>.
N’estes pensamentos incongruentes, havia navegado as trinta leguas q̃ o distanceavam <de B> de Bragança. Era ali que o mysterioso irlandez Jo<ana>suat O’ Neill devia estar em <com> negociação do mosteiro da extincta compa de Jesus.31
E estava, segundo informaçoens, colhidas disfarçadamente<,> pelos indios, que mareavam a balsa de Philippe; mas a esposa do irlandez, por ter adoecido d<e>/as\ febres endemicas n’aquellas paragens doentias, havia sido condusida ao sitio do rico francez32 [↑Poste[f]lui ( ou] Po<stelui>/tfeliz\ [1Pot-feliz] <(> <1,> como la disiam os portugueses [1 portuguzes] <,>/)\ na margem do Guamá. Um paraense, que, ao mesmo tempo, sahia de Bragança<1,> e conversára em máo inglez com Philippe, aproveitou o offerecimto de ir na canôa do viajante até Oeiras. Este homem deu do irlandez alguma noticia mais circumstanciada. Contou que em S.Miguel do [1 de] Guamá havia um[a] <sitio> [↑rossa] com uma <raça> [↑casta] de mulheres de origem indica, mto formosas, e filhas da celebrada D. Clemencia de Catania, q̃ ja havia dado, com a sua desmoralisação [↑e com a das meninas] mto que fazer a um bispo do Grão-Pará<1.>(x) <A>/C\ontinuando, disse que o nababo irlandez, <estivera> [↑hospedando-se] em caza d’estas sereyas, <e> se apaixonara pela mais
(x) O bispo D. Fr. João de S. Jose, a qm o informador alludia, não se esqueceu de D.Clemencia de Catanea nas suas Memorias, pag. 177 e seg.33
31 A linha seguinte, deixada em branco no ms., é eliminada na 1ª ed..
32 “José Alvares Roxo de Potfliz, honrado homem do Pará, filho de um francez, e irmão do erudito chantre, de quem faz honrosa memoria mr. de Condamine” (Memorias, p. 203).
33 Na verdade a história de Lauriana, Nize e Clemência de Catânia, mãe das primeiras, conta-se a partir da p. 176.
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despejada; e tão de vencida levára o coração nada esquivo da môça, com <preceitos> [↑requebros] e finezas de guineos e diamantes, q̃, á volta de oito dias, a rapariga deixava, pela setima vez, a casa, e ia aventureiramte na cola do <irlandez> [↑forasteiro], em quanto a esposa, a titulo de inferma das febres locaes, ficára no sitio de um francez mto hospitaleiro. Concluiu disendo que a menina Catán<e>/i\a estava em Bragança, onde elle a vira, acariciando impudentemente o seu ricasso entre uns cacáozeiros [1 cacáoeiros]. E, pa dizer tudo qto sabia, asseverou q̃ a mulher do irlandez havia pedido á <sen>/M\adame Poste[f]lui [1 Postelui] q̃ lhe desse auxilio para se passar a França.
Confiando quanto devia neste sincero e condoído informador, pediu-lhe Philippe q̃ fizesse chegar á mão da esposa d<o>/e\ [1 do] <irlandez> [O’ Neill] duas linhas, que escreveu em uma pagina de sua carteira. As duas linhas disiam:
Chesterfield deseja convencer-se <de>/que\ o destino tem <tão> maravilhas estupidas nos seus mysterios.
E, armando a sua barraca de esteiras, debaixos [1 debaixo] dos castanheiros e cedros da margem do <Guamá> [1 Guamá<34], esperou.
Passada meia hora viu branquejar por entre a ramagem, <um vulto> a passo lento, uma mulher trajando de branco, soltos os cabellos ao longo das faces pallidas e ondeantes pelas espaduas apenas velladas de transparente escomilha.
Era Bertha de Nieuport, diversa da q̃ elle conhecera, como se a morte a empedrára em livido jaspe, não lhe <quebrando as linhas> [↑alterando os traços] essenciaes do rosto peregrino. Acercou-se d’elle a franceza; [e] sem resguardo dos indios q̃ a contemplavam absortos, <lanço> <[↑*cayu]> [↓enroscou]-lhe os braços em
34 O autor cancelou o hidrónimo sem o substituir, a 1ª edição repõe-no.