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O Demónio do Ouro - 1ª parte

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aspirava a uma posição elevada. Alli o tens mais alto do que eu! Repara, linda!

– Quem ?! – exclamou ella, carregando com ambas as mãos sobre o coração.

– Vai examinal-o de mais perto, se [↑o] não conheces d’aqui. <Revê-te, exulta, namora-te d’aqui> Revê-te, exulta, não <descores> vergues sob o pezo da felicide. Prometti trazer-te ao Rio a ver o amante. Cumpri.

          Laurentina <, *com olhar forte de † remorso,  olhou-o> <abaixou> [­espasmou] os olhos [↑no patibulo], como cegos por <†> suffusão de sangue: olhou, reconheceu e!... não cahiu! Fervia-lhe peçonha nas <veias> arterias, o sangue era um <caxoar> [↑cachoar] de chumbo candente, <no> o coração alargava-se em dores horrendas como um ninho de viboras que se despedaçam.

     <O>/A\ <programma do marido> tragedia urdida pelo marido[1,] ia a meio caminho da catastrophe. <A melhor> O plano era matal-a a ferro frio. Porém,  como o rancor respirara largo e fundo, n’aquellas infernaes delicias de lhe mostrar o affrontado cadaver, modificou a traça somte no instrumento da morte. Resolveu propinar-lhe veneno. Na escôlha do toxico, e da maneira de o obter, gastou trez dias, durante os quaes <tranca> <f> fechou a mulher <encerrada>  em rigoroso encêrro, no quarto da hospedaria  <† e ministrava-lhe alimentos  que lhe ag >.

Tambem ella ideara sua tragedia, que tinha admiravel coincidencia de entrecho com a do marido. Matal-o; afogar-lhe na garganta um punhal, e fugir para o Pará. Depois, alterou <a>/e\ssencialmte o <desenho> <desenho> enrêdo <dos †>. Denuncial-o como homem de varios nomes e appellidos, <como ladrão>, <morto em Bragança e com>  como contrafactor de firmas, como ladrão assassinado e ressuscitado em Bragança. N<o>/a\ indecisão de peores expedientes, Laurentina Catania, da janella do seu quarto, viu que era ob-

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servada atravez dos vidros de outra janella, [↑pertencente á mma hospedaria.] E não só observada; mas galanteada por um rapaz gent<l>/i\l, com dragonas, official de marinha, tostado do sol, cara meridional, extatico;[1,] fito n’ella com os olhos cheios de amor e de supplicas.

Distrahiu-se; e, a poucas voltas, seguiu-se o interesse, e logo o amor. Tudo em menos de cinco horas, mais quarto menos quarto. As paixoens desta mulher nunca tinham incubação mais longa.

     Ao segundo dia trocavam-se cartas de janella para janella, entre as quaes se interpunha um saguão.

     O official de marinha era portuguez, ardente no amor, aventureiro, <querendo> [↑capaz do] atrevimento de roubar a mulher ao bretão, que elle conhecia da meza redonda <e>. Propoz a fuga á esposa retida em carcere forçado. Ella condescendeu, tão depressa que apenas deu escassas horas aos preparativos. No dia aprazado pa a fuga, foi acariciada pelo marido, q̃ lhe entrou ebrio no quarto, e lhe pediu que cantasse as seguidilhas, lettra de Gregorio de Mattos Guerra.

     Laurentina cantou, e elle adormeceu-lhe com a cabeça no regaço.

     E, despertando, notou que tinha a cabeça no chão. Quiz ver as horas, e não achou o relogio;[1:] <foi ás gavetas do> apalpou as algibeiras, todas as algibeiras, e <não encontrou> <sentiu pela segunda vez , o dissabor das > não <achou> encontrou o seu punhal esmaltado de diamantes, nem uma libra esquecida no saque geral q̃ soffrêra o seu corpo.

     Sobre uma banca havia um quarto de papel escripto com estas palavras:

     Não sei se a sua espionagem me descubrirá.

     Será <grande> fatal a sua desgraça, se me descobrir: por que eu direi <quan> então á justiça quem é o estadista inglez Johnson Fowler <o falsificador de firmas>  .

     <Advertencia que>

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  E quem lh’o tinha dito a ella? Ouvira-o n’aquella apostrophe que Philippe  Chesterfield atirára á cara do ladrão na c<ho>/ab\ana das margens do Cahyté.

Foi de mestra a advertencia. Johnson não deu um passo na piugada da consorte. Comprou passagem em navio para Lisboa, reservando traçar de Portugal novo itinerario, se os seus serviços feitos no descubrimto da conjuração republicana lhe não fossem galardoados por D. Maria I<a>.

     Sigamol-o  até á secretaria dos negocios do reino em Lisboa<1,> e esperemol-o á sahida, <por q̃ não é de> pa lhe darmos <p>/o\s parabens do habito de Christo. As familias inglezas, residentes na capital, não nos acompanháram [1 acompanham] neste acto de deferencia ao agraciado. Repulsaram-no como espião e inquiriram-lhe da procedencia em Inglaterra, mediante solicitaçoens do ministro britannico.

     Os haveres de Johnson estavam exhauridos. A dexteridade infame com que <agi> roubára os Bearsley não via o falsificador onde applical-a. Tinha áquelle tempo <mais de> cincoenta [↑e quatro] annos<,>/.\ <em> <era> Estava só, desprezado dos seus patricios, indifferente <aos> a uns portuguezes e odiado de outros. Chegou a requerer uma pensão a Jose de Seabra da Silva[1,] que o afastára com enojo, por que alguns amigos seus agonisavam em Africa, donde elle tinha vindo poucos annos antes; e o homem, q̃ pedia á rainha uma pensão, havia sido o delator de tão illustres victimas.

Quase [1Quasi] em mizeria extrema, Johnson Fowler suspeitou[1,] [­com sobejo fundamto,] que <na> á embaixada ingleza havia chegado a denuncia do seu verdadro nome; por qe um dia<1,> o chanceller[1,] q̃

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 <lhe> o esmolava, <algum subsidio> lhe disse em tom desabrido, mas como em secreto:

– <Suicide>[↑Mate]-se, q̃ de vida como a sua ha [↑so] dois desenlaces: suicidio ou fôrca.

Trez dias depois, o inglez foi procurado em um quarto andar da rua dos Calafates, á ordem do corregedor do bairro. Os <visinhos> [ ↑inquilinos do predio] informaram o meirinho que o inglez ou sahira para fora da terra[1,] ou mudára de residencia furtivamte. Arrombaram-lhe a porta, visto estar fechada por dentro. Na saleta exterior era irrespiravel o ar empregnado de <carvão> [↑gaz carbonico] e <cheiro miasmatico> fetido nauseativo de <cadaver> <putrefacção> cadaver. A alcôva contigua estava meio-cerrada. Abriram-na, depois de ventilarem a sala, e acharam dois fogareiros com cinzas, e <um> o inglez <a>/es\tirado no catre, com um braço recurvo em torno da cabeça, e as unhas da mão do outro cravadas nos bofes da camiza.

O ministro inglez folgou com a noticia. Aos brios da Gran-Bretanha doía <a publiciddos crimes do †> publicarem-se em Portugal os crimes do <†> denunciante da <rev> intentada independencia de Minas-Geraes. Da morte d<o>/e\ <cavalheiro> Jorge Sackville a Gazeta de Lisboa, d’aquelle anno, <de 17<7>/8\4> referiu que o suicidio do infeliz inglez procedêra de desgostos domesticos da maior gravidade para um homem de sentimentos melindrosos.

Alludia ao adulterio de Laurentina q̃, ao tempo da morte do marido, residia em Lisboa, amantissimamente querida do official de marinha[1,] e ja mãe de um menino. [1§] Pormenores da vida aventurosa

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d’esta americana debalde os investigamos, desde aquella epoca. Soubemos apenas que acabou seus dias em avançada idade na rossa do Pará, e que era seu filho um homem de muitissimo boa alma, valedor de negros infermos e de bichos, grande pacificador de disturbios[1,] mediante uma proclamação escripta em taboleta, que eu lhe vi na rua do Arsenal, em Lisboa, [↑ha bons vinte annos,] inculcando aos portuguezes os beneficios da paz e concordia. Chamavam-lhe zombeteiramte o barão de Catania. Era um velho precoce, de cazaca no fio, chapeo de castor branco, <encavalgad> derreado e contemplativo sobre o pescoço de um cavallo branco cheio de annos e fome.

O barão [1«barão»], levado de sentimentos pundonorosos, nunca se <apellidou> assignou com appellidos paternos. <Manteve> Gastou a herança de sua mãe em liberalidades caritativas com os pobres negros q̃ se acolhiam á hospitalidade de tão mal-comprehendido bem-feitor. Morreu ridiculo, tendo vivido honrado![1.]

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 XXXII [1 XXII]

     O incidente da reapparição de Johnson Fowler cortou a <narrativa> [↑historia] que deixamos no prematuro fim de Philippe Chesterfield.

A inconfortavel viuva tornou para  a companhia de seu tio, <e> <bendisse> [↑abençoou] as consolaçoens inesperadas de Eulalia Vieira, a meiga alma formada nas serras do nosso Minho.

Tão do coração lhe quiz á humilde esposa do seu guarda-livros[1,] que <nun> não mais a separou de si, e <no>/na\ <seu>/caz\a <alegre> deliciosa <casa perto> de Westminster se recolheram todos.

Por esse tempo, <no fechar> [↑sentindo-se declinar ao termo de] sua honrada carreira o ultimo dos Bearsley, á caza commercial foi associado o appellido Vieira. Desde o momento da sociedade, Manoel Vieira foi considerado rico; mas o lavor incessante da sua labutação egualava-o em regalias com o menos estipendiado caixeiro. Não tinha filhos, nem ambiçoens. E trabalhava sempre.

Chamou para Londres os seis filhos de fr Bento das Dores da Virgem, e deu-lhes comêço de vida, em sua caza <como>. Nem um de seus irmãos, no rodar dos annos, <vingou> deu de si <qualidades aprov> boa sahida. Eram máos, sobre estupidos. Instavam por voltar a Portugal, preferindo guardar cabras nas suas montanhas, á vida severa e operosa q̃ o irmão lhes impunha. Um queria ser sapateiro; outro capador; outro musico da tropa; outro <†> marchante, [1;] o menos ambicio-

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so ou ms [1 menos] sincero não queria ser nada, e o mais senhoril de condição queria dizer missa.

     Devolveu-os <cada um> todos para Portugal[1,] a fim de seguirem a carreira escolhida[1.]

     Estes pontos escuros no viver de Manoel Vieira não <embaciavam> maculavam as enchentes de alegria, as torrentes <luminosas> luzentissimas que inundavam o seio d’aquella fama. <Então> A luz sahia de uns olhos que <vinte e trez> deseseis annos estiveram em trevas. João Verissimo, o sancto, q̃ escondera no seio de Deus <a fronte> os olhos apagados[1,] e a chorar lhe pedira <comparencia pa não d> claridade na alma pa não duvidar da bonde divina, um dia, ao sahir das mãos do operador [↑Fletcher North], viu á volta de si uns vagos contornos da sua Luiza, <de uma senhora> e de outra senhora q̃ devia ser a creança formosa que deixára tão differente… E, perguntando se alli estava seu filho, Manoel<, com os braços estendidos a tatear o ambiente apare>  <*acercou>acercou-se d’elle, amparou-o nos braços, e <com um tão alto soluçar exprimiam sua felicide que  o <outrora triste> cirurgião os obrigou a † prudencia> entre soluços deram graças ao Altissimo.

– Com que<1,> immensa usura eu sou feliz! – exclamava o velho, quando tudo [↑se] lhe mostrava á sua luz natural – Que padeci eu para tamanha recompensa, ó ma filha, ó minha Luiza, ó meus anjos todos que me estaveis esperando n’este ceo! A ti, Manoel, não bastava dever-te a abundancia de tantos annos, a honra de seres o marido da ma Eulalia! Ainda mais, filho, eu sem ti morreria cego, não te veria mais, <sancta mulher> [↑virtuosa esposa] que tanto [↑trabalhaste e choraste,] e a ti, Eulalia, tão bella, tão senhora, como se eu te houvesse criado nas regalias das cidades a conviver com fidal-

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gas!. Ah! eu bem adivinhava q̃ devias ser assim, quando te apalpava as feiçoens!...  <e † minha [↑filha]> adivinhava o teu porte nobremente modesto quando fallavas. Via-te crescer, <ma filha em cada novo dia> ma filha, conhecia-o pela mudança da tua voz,[1;] e[1,] ao passo q̃ o timbre <infa> <juvenil> infantil  <de> se desvanecia, eu tinha <saudades dos meus olhos> saudade amarga do tempo em q̃ te vira, e <queria> <diluir> <[¯desluzir]> [↑chorava<1,> como se quizesse desluzir com lagrimas as reminiscencias da tua imagem. E eu podia morrer sem vos ter visto, meus salvadores! E, qdo Deus me dá quantas pessoas eu amava á alegria infinita dos meus olhos, vejo tambem a alma generosa, esta senhora tão  <formosa> [↑nova] e [↑ja tão] triste que <†  me> trouxe ao pobre velho o restaurador da sua vista!

E, disendo, curvava o joelho para beijar as mãos de miss Anna Bearsley.

     Corria o anno de 1781 quando <a felicidade> Manoel Vieira voltou a Portugal a rogos de fr Bento das Dores da Virgem[1,] que o chamava para se despedir. <Ainda> Era ja n’esse tempo tão poderoso que viajava em navio seu, acompanhado de toda a familia, em que havia mais uma pessoa[↑, Anna Bearsley][1,] que chamava <E>/ir\man a Eulalia, e o provecto Roberto[1,] que queria <visitar> [↑orar] no Cemiterio dos Inglezes, do Porto, <as> [↑deante das] cinzas de seu irmão John. As trez senhoras e o ancião inglez ficaram n’aquella cidade. Mel e seu sogro seguiram para o Minho.

Referem umas Memorias [1«Memorias»], q̃ tenho á vista, q̃ Manoel Vieria, o mocinho que sahira da Povoa de Lanhoso com um fardel ao hombro, e vestido de guingáo, apparecêra então de cazaca de lemiste encarnado, collete de seda lavrada, calção de veludo escarla-

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te, meias de sêda, borzeguins de cordovão inglez, chapeu acairelado, cabelleira á Luiz XIV, pescocinho enrocado de cambraia, folhos e punhos de rendas de Bruxellas. Assim trajavam os <altos> commerciantes [↑mais grados] da Gran-Bretanha, os magnatas <em cujas naos estava> que  manobravam o leme da <fartura no seu> [↑náo de ouro q̃ mareava em] immenso occeano, coa<j>/l\hado de vasos mercantis. Eram elles a vitalidade do <enteado absorvente dos>  [↑gigante q̃ sorvia os] capitaes estranhos, em escambo de suas industrias menos <†> filhas do genio que do esforçado e methodico lavor, pautado por imperiosa vontade. E Manoel Vieira, timbrando em ter nascido nas pobres serranias d<e>/a\quella <Portugal> rustica e asperrima parte de Portugal, <affeiçoa>amistara-se entranhadamente aos costumes inglezes, ás leis severas, á probidade que se affirmava no patibulo de lord Ferrer, q̃ matára um burguez <indefe> innocente, e no patibulo de [↑William Dodd,] capelão do rei, por falsificador de uma firma. Áquelle tempo, o horror da pena de morte <res>applicada a homicidas e ladroens <na> era sentimento que se estava germinando no ôvo da civilisação, ôvo que deu de si muita casca, isto é mta arenga de tribunos, mta papellada legislativa, e a mma copia de malfeitores, illustrados somente quanto á inviolabilide da vida humana, <q̃ elles>  [↑da sua, que a dos outros] violam [↑elles,] confiados no arto do codigo.

     Confessa-se o descabimento destas divagaçoens q̃, ja outra vez, se intrometteram no romance. É vontade <esquisita> [↑extravagante] de me estar a querer <subrepticiamente *inculcar que o homicida, não justificada em vindicta de sua honra> indispor com a sciencia moderna, <com os> e com <os> leitores de intranhas lavadas, que  alcunham de barbaro o paiz de S. <Franco> Vicente de Paula e

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Lamartine, por que <o cutello decepou a cabeça de Troppman> em França ainda vigora o arto penal que manda garrotar os Troppman [1 Troppmann].

     <*Conciliados até onde pode ser-se  em paiz   *agravantissmo, n’isso pedimos meças ao>  <Homicidas> <Desenfronhada a novella destas  modas> Quando ca os tivermos de condição analoga, [↑(ja nos sobram exemplos)] enviamol-os ás costas africanas, colonias que podiam ser o <thesouro> [↑veio de ouro regenerador] deste paiz de cabeça enorme, [↑enferma de] hydroceph<alica>/o\ [1 hydrocephalo], se em vez de la mandarmos os escapos da forca, dessemos alentos <,[↑prestamio]> e caução de prosperide a <la> colonos não obrigados a lá morrerem [1 morreram], a homens abonados <pelo> por amor de pais e maridos, a operarios que <se sucedendo> almejassem volver ao seu torrão natal <abastados> com abastada velhice.

     <E agora sera precizo o> Coisas destas não discutia Mel Vieira para que o possamos incabeçar em tão extemporaneas  controversias. Portugal, n’aquelle tempo, tinha tanto na memoria as scenas patibulares, q̃ isto de matar nas encruzilhadas ou nos açougues judiciarios<1,> tanto montava<.>/,\ <La parava ainda o furtum>  [↑e como que tresandava ainda no ar o fartum] das sangoeiras [↑politicas] do marquez de Pombal, continuadas na America pela filha de seu real amo. <Morriam em cadafalso com> <Pois se taes questoens <destoam> dessoam d<a>/os\  <*opera d> <bons costumes d’aquelle tempo, levantemos a mão de <velhicerias> materia † sobre *baixa> [§] Agora, sim, temos chegado com Manoel Vieira e João Verissimo á portaria do mosteiro de Bouro. Annunciam-se  ao irmão porteiro, e logo desce o abbade a recebel-os e conduzil-os á cella em que está intrevecido fr Bento das Dores da Virgem.

     O monge septuagenario abre os olhos ja desvidrados da refracção <d<o>/a\> <sol da vida in>  <luz natal> luminosa da vida exterior, fita-os na compostura palaciana do filho, e sorri com

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 tristeza. Manoel beija-lhe as mãos escarnadas, e João Verissimo, encarando-o com assombro, chora, murmurando:

– Quando ha quarenta e dois annos caminhavamos com os nossos livros para Braga, ó Bento…

– Se tu me visses, hoje,  <padre> [↑João … ] – disse o benedictino.

– Pois não te vejo eu?! Ha seis mezes que <se me nova> o mundo se me abriu de novo. Leva as mas <lagrimas de gratidão a Deus, se te adiantares na> oraçoens de reconhecimento ao Senhor, se os teus olhos se fecharem primeiro.

Fr Bento abraçou-o com esforço doloroso, exclamando:

– Podéste ver o teu filho, o esposo de [1 da] tua filha! Devia-te a justiça divina essa exultação. [1!...] Aqui o tens, obra tua, a criança q̃ te foi pedir a honra salvadora de tantos deshonrados… E são tantos á volta de ti, meu filho!. E vem ahi uma geração de gente tão perdida, tão mergulhada no pégo da lama, q̃ se chama ouro!...

Calou-se o monge, olhando sem pestanejar pela janellinha da cella por onde ao longe via o ceo azul e um cêrro de [1 do] monte coroado de arvoredos.

     Manoel e João contemplavam-se admirados das phrases proferidas n’um vago de prophecia.

     De  subito, fr Bento emergiu do seu lethargo, e sorrindo para João Verissimo disse:

– Os nossos seis annos das aulas em Braga, ó João!... Como tu estudavas noite e dia! 

 

 

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E eu<1...> que vadio, que ignorantão! Lembras-te, meu velho, quando eu me assignava com V e tu me citavas Benedictus e S.Bento em prova de que eu me devia assignar com B?

João, rindo e enxugando as lagrimas, disia:

– Mas, sem eu saber qdo estudaste, <se outro> sei que o teu espirito se esclareceu.

– É verdade: ha uma lampada infernal que de noite se acende sobre o livro maldito da chamada Rasão humana, sem reflexo da divina. Quando me vi grande criminoso, necessitei de repellir de emtorno de mim uns fantasmas q̃ me amedrontavam <1 – > os sustos religiosos, as tradicçoens, a educação q̃ meu pai me dera e um tio padre q̃ la chamavam sancto. Quiz saber como poderia abafar a consciencia sob o pezo da rasão. Consultei uns homens q̃ se chamavam espiritos fortes<1,> e se disiam discipulos d<os>/o\ mais illustr<es>/e\ incredul<os>/o\, o <marquez de Pombal, e outros q̃> Conde de Oeiras. Disseram-me que o regenerador do genero homano se chamava Voltaire. [1§] Era-me necessario saber a lingua redemptora, a lingua de Voltaire, para com ella esconjurar as larvas q̃ me <†>bradavam: «maldito!» Então li mto á lampada do inferno <espedi tudo q̃>. Ri-me dos meus preconceitos, adormecia sereno no regaço da minha rasão, e apenas exercia as exteriorides de padre para que o pavor d<a>/o\ m<a>[eu] atheismo não me afugentasse as occasioens do gôso<,>/.\ <no p>  Ja sabes o q̃ estudei, e onde a minha scien-

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cia me arrastou. Essa rasão que adquirira, tive de apagal-a na embriaguez pa ser menos atormentado por ella!... Foi então, ó meu bem-feitor… – prosseguiu [1 balbuciou] o monge, beijando a mão do filho, e logo os soluços lhe cortaram a voz em <trem> gemidos.

     Applacadas as ancias, tornou <á>/a\ suave quietação o [1 ao] semblante do monge [1 frade], que continuou, sem desprender a mão do filho:

– Sei que estás muito rico, sei-o pelas mesadas q̃ dás ás mães de teus irmãos. Não me pejo de assim te fallar, nem os escrupulos me retém. <O algoz> Deus não quer que eu, <a> [­pr] contemplal-o, me esqueça das victimas q̃ deixei á tua caride. Meu filho, tristemente sei que teus irmãos não te pagam com o contentamto de os encaminhares em <vida> proceder honesto. Não se me esconde que vida elles vivem, de varredores de feiras, bulhentos, regaloens, presumidos da tua liberalidade, ostentando no trajo, e nas maneiras, cabedaes q̃ não tem, se lh’os tu negares. São seis dores que eu intranhei na tua alma, filho, são seis vergonteas da arvore maldita... Se <as>  tua<s> [1 Se tu] os desamparares[1,] onde irão dar esses homens sem modo de vida! Como heide eu olhar pa a ma sepultura ja aberta, e dizer que está ali o meu eterno repousar, a resguardo de maldiçoens!...

– Não lhe sejam motivo de amargura meus irmãos – atalhou Manoel – Eu

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heide protegêl-os [↑sempre]; e por ma morte, se a fortuna me não desamparar, viverão em abundancia.

– Oh!... – murmurou o monge, repondo a vista baça na nesga azul do ceo – A abundancia, n<as>/os\ <condiçoens más> máos  instinctos, é um manancial de vicios. <Se acaso>  A flor da virtude fenece em jarra de ouro. Ao sopé  da cruz <de páo> [↑rustica][1,] plantada na serra, viçam as florinhas <em>. A purpura do rico desfaz-se em farrapos como <a>/os\ <estôpa que raspa nas >  tomentos60 sobre a pelle denegrida do pobre. So a virtude é riqueza. Eu herdei mto ouro, e comprei com elle a liberde de ser perverso [1 preverso].  [1 §] Se eu fosse pobre, teria <garrotado> dado garrote <a>/á\s minhas 2propensoens 1malvadas, na impotencia de as satisfazer. Abundancia! abundancia ! – continuou o monge casquinando um riso asperrimo. – De cada mil homens poderosos, escolhe Deus um para seu anjo de caride. [1 §] E á volta desse medram muitos infames a quem a liberalidade do bom deu alentos. Ha generosidades que, ao c<h>/a\hirem nas condiçoens más, se transformam em peçonha. <T>/É\ como a esmola pedida para pão de filhos e empregada na compra de um punhal. Que valerá a onda de ouro, onde até os justos resvalam e naufragam! E ella virá, a riqueza grande, como um pegão de vento a <desarreigar> quebrar as arvores <po> carcomidas e a desarreigar[1 desarraigar] as plantas novas. Será como <a>/o\ <corrente> [↑furacão] da peste. Ver-se-hão os bons cahir <morto> feridos ao lado dos máos. As virgens virão vender-se no mercado onde os <infames> ricos hãode abrir armazem de libertinagem. Poucos annos terão passado, e a <mise> pobreza

 


60 tomentos: a parte fibrosa e mais áspera do linho, estopa grossa.

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 tornará com a hediondez q̃ <não tivera a> acompanha o pobre que foi rico, e <perdeu a> atirou a sua fe ao abysmo da sua fortuna…

Seguiu-se um murmurar de vozes inaudiveis. 

O prelado, levando fora da cella os dous hospedes, disse-lhes q̃ o monge tinha a miudo visoens e raptos propheticos, mas pr tal modo desordenados na phrase [↑enigmatica] q̃ não havia intendêl-os, e acrescentou:

– Não duvido crer que fr Bento seja favorecido da previsão; affiançam-m’o a santidade dos seus annos de claustro, e as penitencias que lhe tem subtilisado a alma e dado altos lumes de vaticinação.

Manoel e João Verissimo <hospedaram-se> [↑pernoitaram] na <caza privativa> [↑hospedagem] dos visitantes, contigua ao mosteiro.

Ao outro dia, foram despertados para assistirem aos [1 nos] ultimos momentos do monge.

Assistiram ao ministerio da extrema-uncção, ajoelhados aos pes do leito. O moribundo acenou a Manoel, que se abeirou dos labios d’elle, e ouviu estas palavras:

<– *É uma>  — Não os faças ricos: obriga-os <pela pobre> a procurar a virtude pelo caminho da pobreza… [Meu filho, [­o anjo do infortunio faz mto] menos victimas que o demonio do ouro…]

Depois, pendeu a face na curva do braço esquerdo d<o>/e\ <filho> [↑Mel], collou os labios na imagem de Jesus que <Man> <o>/lhe\ <filho  lhe> approximou dos labios<, estremeceu soltando>  o filho, e assim se quedou sem ancias até estremecer, expedindo um flebil gemido.

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XXXIII [1 XXIII]

<Manoel Vieira regressou a Londres. E na companhia das senhoras ia outra de vinte e dous annos>

Por  aquelles dias, soube Manoel Vieira q̃, no Recolhimento da Tamanca, em Braga, vivia uma recolhida em pobreza extrema, filha da ja defuncta senhora de Darque, com qm o padre Bento Ribeiro se havia homisiado em Hespanha. Contaram-lhe que a pensão dada á mãe cessára  por sua morte; e que a menina acceitára <no Recolhimento officio de creada> [↑ser creada de uma pensionista] por não ter de quem se valesse.

     Foi Manoel Vieira a Braga com sua mulher<, e>. Pediu á regente d<a>/o\ <Tam> Recolhimto que lhe <cha> enviasse ao locutorio sua irman, filha de D.Paula de Magalhaens.

– Nunca a mocinha nos disse q̃ tinha irmão – objectou a regente –; <a>/o\s noss<a>/o\s estatutos são mto rigorosos em receber o sexo masculino no locutorio; como  vem tambem uma senhora, não duvido mandal-a <a fall>.

     Cristina[↑, que tanto poderia ter dezoito como quarenta annos,] appareceu vestida de baeta escura, cabello cortado, faces lividas, olhar estupido, geitos <*medrosos> canhestros, postura boçal, um todo de repugnante <†> miseria de alma e de corpo.

     A regente, por se desafogar de escrupulos, mandou com ella uma recolhida velha tão parecida com a nova em modos e feitio, que pareciam ser uma o supplemento [↑peorado] da outra.

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Perguntou-lhe Manoel se tinha recordaçoens de <Hespan> Rendufinho.

Esteve instantes apensar; rosaram-lhe as faces; abaixou os olhos, e murmurou:

– Ainda me lembro.

– E de seu pai?

Ella, soluçando e engolindo as lagrimas, balbuciou:

– Tambem.

– Eu sou seu irmão, menina – proseguiu Mel Vieira – Este lucto, que me vê, é por nosso pai, q̃ ha oito dias morreu. Sabia onde estava seu pai?

– Não, sñr.

– Ninguem aqui lhe falou n’elle?

– É prohibido – interpoz a velha.

– Que é prohibido, creatura? dizer a esta menina q̃ tinha pai?

– A snra regente é q̃ sabe.

– Pois bem: vá vmce entregar á snra regente esta ordem do snr arcebispo D. Gaspar, e não se detenha mto q̃ tenho pressa.

Em quanto a velha foi, perguntou D.Eulalia á menina:

– Tem sido muito infeliz, snra D. Christina?

– Desde q̃ ma mãe morreu.

 – Quando morreu ella?

– Hade haver seis annos.

– E qtos tem a menina?

– Dezanove [1 Dezenove]. 

– E quer ir com seu irmão e comigo[1,] que sou sua cunhada?

– Permittisse Deus…

– Tem que vestir alem desse vestido que <leva> usa?

– Não, senhora.

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– Menor é a demora no toucador – interveio Vieira sorrindo.

– Eu <empresto-lhe> [↑cubro-a com] o meu josesinho – <q> tornou Eulalia, <e Ma> referindo-se á sua capinha de viagem que tinha aquelle nome.

– Vai de qualquer modo, cerrando as cortinas da liteira – observou Manoel.

     A regente allegou que a senhora Christina precisava de vestir-se com decencia pa sahir.

– Vestir-se com quê? – perguntou Vieira – Esta senhora, servindo outra ha seis annos, deve ter ganho saia e mantilha decentes.

– Tem ganho a comida, e algum vestidinho, e bons exemplos…

– De economia – acrescentou o irmão da ditosa menina, cuja alegria lhe pulava nos olhos.

Vieira, insistindo na immediata obediencia ao mandado do arcebispo, exigiu a sahida sem mais delongas nem<1,> reflexões banaes.

Acercou-se uma liteira da portaria. Entraram n’ella as duas senhoras. Manoel seguiu-as a pé á estalagem, onde se detiveram dois dias para entrajarem convenientemte a filha de D.Paula de Magalhaens.

     Nestes dois dias nasceu o sol, bafejaram as auras, trinaram as aves, azulou-se o ceo, aromatisaram as flores, estrellou-se o firmamento, resurgiram todos os elementos abafados da vida, da alma, da esperança, da alegria d’aquella menina. O seu espertar [↑do primeiro dormir,] <foi um como> se o somno quebrantou aquelles nervos exagitados, seria um como abrir-se-lhe

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os cancellos da masmorra, <a> [↑o quebrarem-lhe a] pedra tumular <de todos os seus orgãos vitais, <exceptuados os> <sedimento <da angustia> <da estupefacção angustiosa> . Já no pallor do rosto se lhe abriam uns traços da bellesa, <duns> uns relevos que a fome <deprimira> [↑esbatêra].  <Revia-> Transluzia-<se>/lhe\ nos olhos o raiar d<e>/o\ <um>/seu\ primeiro abril em desanove  annos. Se a deixavam sosinha, ajoelhava agradecendo a sua mãe, com as faces e <mãos> mãos rossiadas de lagrimas, ter pedido a Deus por ella.

     Parecia ainda temer-se do carcere da Tamanca, narrando os desprezos que <ella> sua mãe soffrêra, as injurias que lhe atiravam ao coração despedaçado<,>/.\ <chamando-lhe nomes  que a filha> Depois, fallecida a martyr, <que> e <privada de> [­acabados os] recursos [↑da commiseração dos parentes,] acorrentáram a <filha>[¯ orfan] ao poste [1 posto] da <p>/i\ndigencia para ainda a insultarem como filha de tal mã<gen>/e\  e sacrilega filha d’um padre q̃ <era> [↑havia sido] a vergonha do clero.

Manoel Vieira adivinhava o que sua irman não sabia exprimir; soffria <impetos es> <de> escutando-a; e ja lhe pedia que se esforçasse por esquecer-se, a fim de não perder a fé na <formação> [↑creação] da especie   humana deliniada na mente do creador á semelhança de sua propria imagem.

     João Verissimo e miss Anna Bearsley esperavam no Porto a sua <companh> fama.  

     Notaram todos uma profunda alteração no espirito de Manoel, um recolhimento insolito, a tristeza dos desgraçados que não a sabem exprimir. Aquella vasta alma e sancta serenide com que Deus o sorteara em

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difficillimos lances, demudou-se em apprehensoens de animo supersticioso e mysantropo. <Raramente> [↑Poucas vezes] lhe abria á flor dos labios um espontaneo e sincero riso. Contrafazia-se; mas a magua que dissimulava <appremia> pungia mais intensamte os seus amigos. Eulalia não podia ter as lagrimas; por q̃ na tristesa do esposo vislumbravam-se-lhe preludios de mortal doença[1.]

     E, todavia<1,> Manoel Vieira não tinha uma dor, se quer um leve achaque, <um> pr onde se desse a si a <differença de> razão do que secretamte lhe ia na alma.

É que elle estava a cada hora ouvindo as palavras do monge moribundo:

«<O anj> Meu filho, o anjo do infortunio faz mto menos victimas q̃ o demonio do ouro»[1.]

 

Fim do primeiro tomo [1 volume] 

 
 
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