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O Demónio do Ouro - 1ª parte

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citado bispo do Grão-Pará, eram azados de molde <q̃> [↑a] não <deplorarmos>  [↑podermos, sem esforço da poesia lugubre, deplorar] a sorte d’aquella fugidiça menina q̃ cantava umas cantilenas offensivas da pudicicia do sargento-mor de Bragança. Declinarei de mim a imputação de aleivosia assacada á memoria das senhoras Catanias, trasladando das «Memorias» de D. Fr. João de S. Jose Queiroz algumas linhas biographicas d’aquellas damas. [1§] «A 2 de Janeiro (vem historiando o bispo em linguagem que tresanda a folhetim, pag. 17543) descemos pelo mesmo Garapé (freguezia de S.Miguel do Guamá) e havendo de ir seguindo, depois de sahir ao Guamá, o rumo d’este rio, impediu o intento o segte successo: Cortava uma canôa bem esquipada ligeiramente as aguas, e endireitando á proa, conheci n’ella um moço estudante do Pará, q̃, passando á canôa em q̃ iamos, nos entregou cartas do nosso provisor, em q̃ nos dava conta de uma intriga e das providencias. É caso  que podera [1 poderá]44 servir de instrucção [↑ao leitor]45 (de instrucção! credo[1!]) <ao>[1.] Na cidade de Bellem ficaram orphans de pai duas moças. [1§] Chamemos Lauriana uma, e Nize46 a outra. (Honrada pseudónimonia!)

«Sua mãe passou a segundas nupcias com o mais miseravel homem q̃ se conhece. [1§] Tractava elle descaridosamente as duas entiadas; de sorte q̃, morrendo elle de pura mingua, por não gastar, parecia querer q̃ a fama expirasse na observancia de tão impraticavel dictame. As môças, desesperadas, fu-

 


43 A transcrição que se segue das Memorias de Fr. João de Queirós é exacta, alterando apenas Camilo algumas grafias e a pontuação. Como nos declara em nota, possuía o autógrafo do bispo, que lhe terá servido para preparar a impressão de 1868, e usa-o para corrigir alguns erros manifestos daquela edição. Outras pequenas variantes, serão adiante registadas em nota.

44 podera [1 poderá]: poderá nas Memorias.

45 Adição conforme às Memorias, portanto não é variante de autor mas lapso de copista.       

46 Lauriana uma, e Nize: Lauriana a uma Nize nas Memorias

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giram de casa; e, levando-as a mãe pa uma rossa, teve o desaccordo de as conduzir a caza de um seu irmão semi-barbaro (homem q̃ matava escravos com açoutes) pa q̃ lhe castigasse as filhas. Achou-se o homem no seu elemento: e, sem recato do sexo nem attenção a umas donzellas creadas com aceio, e ja crescidas, ps uma passava de vinte annos e outra de desesete, despindo-as em publico, as açoutou com um nervo de boi – costume [1 Costumes]47 dos tyrannos de Roma no gentilismo Antigo, semelhante ao do Para, menos em polido. [1§] Fugiram as <<p>/m\oss> moças de tanta feridade, e aggravadas do rigor<1,> foi mto natural acceitarem no disfarce da commiseração as expressoens de affecto com q̃ tentaram insinuar-se compassivas pessoas q̃ não nomeamos. Entre os q̃ tiveram[1,] com celebres pretextos, audiencia particular, foi um ecclesiastico, o qual (·), achando-se em conferencia com uma,  a mãe, q̃ estava em Belem, recebendo avisos, mandou indios com ordem de bater em qm achassem48. Dizem q̃ o tal beneficiado tivera a fortuna de se escapar com vida; mas, sempre sacudido com pesada mão, entregou á ligeireza dos pés desviar-se do q̃ tinha  merecido a levêza da cabeça.

«Aqui se deve fazer uma reflexão: ha

 


(·) Não se siga, nesta passagem, a grammatica do sabio monge de S.Bento<.>/,\ <E do † mais> nem tão pouco os exemplos do qual.

 


47 costume [1 Costumes]: costume nas Memorias.

48 achassem: achasse nas Memorias, com erro na concordância em número, corrigida por Camilo no autógrafo.

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creia [1 quem creia49] que o clerigo não foi quem mamou a surra: dizem q̃ foi outro que no mesmo tempo se sangrou. Se foi, era dos oppositores. O certo é q̃ o clerigo mostrou o corpo a pessoa grave no segte dia, e não tinha signal de pisadura, sendo que as pancadas foram rijas[1.]

«Como, porém, houve escandalo e mais algas circumstancias, paternalmte o admoestamos e tivemos prezo na Barra, não entrando em mais averiguaçoens por motivos q̃ tivemos pa  isso, desapparecendo as môças de repente,  e uma terceira q̃ vivia com ellas.

«Na vespera de sairmos pa a visita tivemos aviso de q̃ ellas estavam na cide; e, mandando-lhes50 uma intimação pa se recolherem a caza de sua mãe, escondeu-se uma em caza de um cafuz e outra na caza51 de um beneficiado. 52 Deixamos ordem ao doutor vigario geral pa dar providencias. Achando a primeira, depositou-a em caza honesta; á segunda, porém, custou a arrombar-lhe as portas, á força de alavancas, com ajuda da tropa, pr ordem do general, achando-se finalmte (bom lance de estylo espiscopal!), se não afogados n’agua como Hero e Leandro, como carrapatos na lama e na immundicie do seu peccado ate ao53 pescoço: assim foi, pr q̃ mettidos em um lago de tartarugas, só appareci- [appareciam]54


(·) O impresso diz: Achamos ordem do doutor; etc[1.] Emendei, confrontando com o manuscripto authographo q̃ possuo.


49 ha creia [1 quem creia]: ha quem creia nas Memorias. No autógrafoCamilo comete um típico erro de cópia: uma lacuna resultante da interrupção do ditado interior pela mudança de página.

50 mandando-lhes: mandando-lhe nas Memorias.

51 escondeu-se uma em caza de um cafuz e outra na caza: esconderam uma em casa de um Cafuz, e outra me casa, nas Memorias. A primeira variante (escondeu-se/esconderam) parece ser intencional de Camilo, atribuindo a desobeciência às raparigas, em coerência com o sentido geral da história; a segunda variante (na/me), supõe erro das Memorias (me por em) e variante correctiva de Camilo.

52 Falta, no autógrafo, o sinal de chamada para pé de página. A princeps insere aqui uma chamada de nota.

53 ao: o, nas Memorias.

54 Nova lacuna (a sílaba final da palavra) produzida pela mudança de página.

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as cabeças. Tirados [1 Tiradas]55 fora, mandou o vigario geral entregal-as a sua mãe. Iam ellas na canôa q̃ encontrei[1,] e qm me deu as cartas era o irmão d’ellas. Como não quiz acompanhal-as, nem permitti fossem em conserva, deixei navegar as sereyas… No dia segte, visitamos o oratorio da mãe d’ellas, chamada Clemencia de Catania, a qm não quizemos fallar nem vêlas a ellas. Pelo soldado q̃ governava a canôa, em que se restituiram á rossa, mandei ordem para q̃ o clerigo, visto necessitar tanto de remedios, os fose tomar pa a Barra, prezo na casa forte d’ella, sem liberde de passeio á muralha. [1§] Deixamos o jantar q̃ nos preparava a snra Clemencia de Catania,  e fomos visitar, etc.[1»]

     Rasão tinha o bispo em se temer e fugir das duas meninas como de sereyas.

     Logo adiante a pag. 195 das suas Memorias, e oito dias depois de as haver tractado com tamanho desprezo, escreve o prelado paraense: «Pelas trez horas da tarde56, cheguei á Casa-Forte ou villa de Ourém… e chegamos ao sitio de Padre Gabriel… Aqui veio a mãe das duas moças em q̃ fallei, trazendo-as em sua compa. Fallei-lhes na capella, disse-lhes o q̃ devia, e despedi-as[1,] com brevide e  contentes, por q̃ lhes prometti q̃ seria soldado um irmão de qm justamte viviam aggravadas, e com effeito está no serviço militar.»

 


55 Tirados [1 Tiradas]: Tirados nas Memorias mas com erro corrigido na princeps (veja-se logo a seguir entregal-as).

56 trez horas da tarde: tres da tarde, nas Memorias.

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Feiticeiras ou não ?

Pois aquella que deixava ver a formosa cabeça á <tona do l> flor d’agua no lago das tartarugas, era a Laurentina de Johnson Fowler, seis annos mais velha do q̃ o bispo a vira, porem mais alindada de graças, de artes que lhe esmaltaram [1 esmaltavam] o natural, com mta experiencia de coração [↑e de tudo,]  e ja emancipada de sevicias de irmãos, ou de mãe <que *odiava>  cujos odios ás galanterias das filhas <se  <h> haviam rebentado da posthema> [↑eram posthema <de>] d<o>/e\ ciume q̃ ell<as>/a\ tinha dos beneficiados e cafuzes.

Por tanto, não ha motivo para compaixoens. Laurentina desembarcou na sua rossa, fechou-se no  seu quarto [↑com a irman]<1,> e debulhou-se em sinceras <lagrimas> [↑lamurias], beijando um collar de diamantes com retrato que Johnson havia descolchetado do colo de Bertha, sob qualqr disfarce, para adornar o seio da satanica americana. E, em louvor de sua izempção, <cumpre-me dizer>  [↑não <[­lhe]> soneguemos] que a sereya do Guamá, qdo beijava o retrato, nunca se lembrou que os <trinta> [↑cincoenta] diamantes do colar podiam valer vinte e cinco mil cruzados, e foi necessario que sua irman…[1,] Nize (como o bispo a <chamara> [↑nomeára]) lhe dissesse que os diamantes valiam mais que as duas rossas de seus dotes.

A<s>/o\ <meninas conversaram ate noite alta>  outro dia teve Laurentina a pungente nova de não ser [ter] sido <sepultado> [­enterrado], mas mergulhado no rio, o cadaver do inglez.

Esta affronta aos restos do seu amado represou-lhe nova açude de <lagrimas> [↑prantos] pchoradeira longa. Era mavioso e lagrimavel vêl-a offerecer gratificaçoens aos indios que lhe descubrissem no Guamá o corpo do seu querido[1,] q̃ ella desejava sepultar na capella da <1 sua>

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rossa com a possivel solemnide funebre[1!]

     Quando os indios batiam as margens do rio, em cata do defuncto, pr ventura enramalhado nas raizes do andiroba e do hóiti, descobriram uma canôa de dois remos, derivando cozida á ourela do rio. Os indios de terra perguntaram cuja era a canôa,  e  la de bordo responderam que iam em demanda do sitio das senhoras Catanias. Desandaram os escravos a darem aviso de grande susto para Laurentina que escondeu o colar, aconselhada por Nize, a velhaca. [1!]

Entrou a canôa no guarapé, ou enseada que o Guamá fazia até á rossa das paraenses. As cautas damas, <pela primeira vez em sua vida> [↑atemorisadas da justiça], resistiram [1 recusaram] abrir a porta, sem <a certeza de> [↑conhecerem] quem as procurava a deshoras. Um dos dois que occupavam a canoa escreveu pelo tacto <duas> [↑uma] palavr<as>/a\ com a unha em uma folha de sucuabá. Laurentina recebeu a folha com repugnancia[1,] por lhe parecer q̃ andava alli obra de amores mais bucolicos do que o usual na familia. Escrupulisava em acceitar a folha <†>, nuncia [↑intempestiva] de <um> algum insulto á viuvez de sua alma. Sem embargo, como era necessario  conhecer o attrevido<1,> que se andava aquella hora <exercitando> classificando a Flora do Amazonas, leu a palavra.

Eis que expede um estridente grito, e logo exclama:

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– Ó Neill!

– O que? – accudiu Nize – Ó Neill! Isso é zombaria!

– É um ultraje á minha dor! – accrescentou Laurentina[1,] resolvida a mandar <espan> os seus escravos <†> punir os insultadores.

Um d’elles [1 Um dos escravos], porém,  q̃ abrira a porta e reconhecêra o amante mais recente de sua ama, e de todos o mais generoso, em qto um seu [1 o] companheiro levava a folha, abriu elle a porta ao encapotado; por maneira q̃, no momento em q̃ Laurentina ia açular os mamelucos ao zombador d<a>/o\ [↑ infortunio e da] morte, Johnson Fowler assomou no limiar da sala, deixou cahir o manto, e disse:

– Ninguem te ultraja, Laurentina! Sou eu!

– Tu! tu! Ó Neill! – bradou ella, correndo-lhe para os braços, e machucando as palpebras para rasgar as nevoas de um sonho delirante de <jubilo> insania, tal qual como em todos os dramas onde ha esta especie de ressurreição.

E elle, pondo-lhe sobre os labios a extremidade de dois dedos, murmurou:

– Falla baixo, meu amor! Estou salvo, estamos salvos, se formos discretos...

– Oh! – tornou ella osculando-o com vertiginoso afôgo – mas tu não estás ferido, O’ Neill!... Eu vi o teu rosto coberto de sangue…

– Tenho a cabeça ferida… A bala apenas me cortou a carne, mas não feriu o osso. 

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<Nós> Eu te contarei [↑como obtive] a ma salvação… Agora, é mister que, <a excepção do> [↑tirantes [1tirante] o] indio q̃ me abriu a porta, ninguem suspeite que eu vivo. Passados poucos dias, estaremos salvos, ma esposa!

– Esposa! – exclamou a dama com meiguice – Eu tua esposa, O’Neill!...

– Deante de Deus te juro q̃ o serás, por que o meu sangue foi o baptismo da tua nova existencia, e as lagrimas que choraste chegaram verginalmte puras ao meu coração!

Laurentina acabou por desmaiar; e, quando recobrou os sentidos, disse umas coisas tão jocundas e tolas[1,] q̃ parecia ter os miolos desengonçados.

XXX [1 XX]

<Se já †>

A palestra de Johnson com as filhas de D. Vicencia continuou por noite fora. De vez em quando<1,>  o hospede chapinava [1 chapinhava] a ferida da cabeça, e gabava-se de não sentir pontinha de febre. A <extremo> carinhosa infermeira adheria mechas de fios á chaga[1,] e <untava>enfaixava-lhe a testa, amparando-a ao seio aflante de alegria[1.] A intervallos[1,] referiu Johnson a maneira como se escapou. Por abreviar, damos o resumo da narrativa.

O inglez, quando cahiu, conheceu e confessou sinceramente q̃ não estava morto. Deram-lhe im-

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petos de erguer-se e remetter com um [1 o] punhal ao seu patricio, q̃ o perseguia – contou elle – por vingativos ciumes de Bertha. Melhor avisado, porém, deixou-se ficar < estirado> no chão, <prevendo ensejos de salvação> bacorejando entre-aberta de escapulir-se.

Assim que todos sahiram da barraca, <a sua exultação instantes> exultou; mas minutos depois viu um dos soldados sentar-se á porta, carregando o cachimbo. Tinha dois expedientes a seguir: corromper ou matar o soldado. Optou ensaiar o primeiro, sem prejuiso do segundo. Ergueu a cabeça, sentou-se muito ás surdas, e meditou no modo de ressuscitar menos espectaculoso, receiando espavorir e afugentar <á>/a\ sentinella. Ao mesmo tempo estava o soldado cogitando se o morto teria algum<a>  dinheiro nos bolços. E, inclinado ao mais agradavel da hypothese, resolveu examinal-os, bem que na espinha lhe formigassem calafrios [1calefrios]. Observe-se que Johnson Fowler não podia referir ás senhoras Catanias as <ladras> [↑ladravazes] meditaçoens do soldado, <parte q̃ elle> [↑ainda q̃ elle], soberanamte infame, <tivesse> [↑devia ter] o sexto sentido q̃ penetra o recondito das infamias alheias. Semelhante revelação a fez o escrupuloso soldado, [↑em edade decrepita, e] á hora da morte, quando explicava a procedencia <d’uma rossinha> [↑das vastas rossas] que <comprara> [↑adquirira].

Referiu elle, em concordancia com o <†>inglez, que, ao tomar brios para espiolhar as algibeiras do defuncto, sentira um gemido, e logo ouvira as seguintes palavras: «<Valente> [↑Caritativo] soldado, <se não tens medo a *morrer> se me soccorres, não precizarás mais de <vestir as correias> [↑servir o rei]. Aproxima-te de mim, e chega-me um copo de <vinho d> aguardente. Beberemos, tu á ma saúde<1,> e 

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eu á tua felicidade!»

O primeiro movimento do <milici> <bellicoso brigantino>  <do> soldado foi engatilhar.

– Não me <mates> [↑atires], por que eu [↑por ora] sou immortal – proseguiu o ex-defuncto – Não posso morrer, sem cumprir neste mundo o fadario a que fui condemnado. Se queres ajudar a salvar a ma alma, recebe estas <pec> onças de ouro, e dize a quem te poz ahi de sentinella que eu fugi, quando dormitavas, ou que <os anjos> [↑uma galilé de demonios] me <levaram> [↑levou] para as profundezas do inferno.

O <milicio bragantino> [↑mameluco, bastante symbolico do exercito da capitania do Grão Pará,] aproximou-se de [1 do] Johnson[1,] que ja estava regularmente sentado, e cravou olhos coruscantes nas peças que lourejavam na mão do inglez.

Pegaram de conversar como duas pessoas viventissimas, com o gomil da aguardente  de cana, q̃ o soldado forrageára no espolio do sibarita, concorrencia que mto lhes espiri<tualisou>[↑tou] a cavaqueira, e valeu mto <á lavagem> [↑ao curativo] do ferimento. Sahiu fora o indio, e voltou com umas folhas de caboraíba[1,] que espremeu sobre a <epiderme vulnerada> [↑cabeça escarnada] do inglez. Depois, como a luz da madrugada coasse [1cahisse] por entre as ramarias, o soldado, leal em <sua corrupção> [↑seus contractos] e <sub> docil á superstição q̃ o dominava, <sahiu com o seu> foi esconder Johnson em um cerrado cacoal, e seguiu o caminho de Bragança para communicar a resolução que tomára de atirar o cadaver á corrente. No decurso do dia, levára alimentos ao <†> esconderijo, <á>/e\ á noute o conduzira na canôa do inglez, que ali estava na ribanceira, <*abaixo> <*toldada> <na>/á\ rossa das se-

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nhoras Catanias. Este homem serviçal[↑, como dicto fica,] prosperou depois em tanta largueza, q̃ morreu rico; e, por de sobra, ainda salvou a alma, confessando in extremis a derivação de bens q̃ ja lhe não eram necessarios.

     Esmiudadas estas coisas em longa conversação com as damas, veio a ponto perguntar Laurentina [↑ao amado] se as suas riquezas tinham ficado todas em caza do sargento-mor. O interrogado desdenhou do roubo q̃ lhe haviam feito, e disse que em toda a parte da terra povoada tinha banqueiros. Para o <interam> entretanto mostrou elle um relogio cravejado de pedras inestimaveis, um cabo de punhal <da mesma crav> a oiro [1 de ouro] e diamantes, e arrolou nas riquezas communs o collar de Laurentina.

Ao que ella accrescentou<:>/,\ [inebriando-o com langorosos olhos:]

– E tens a minha rossa, meu amado esposo!

 

     Rapidamente enfardelaram a ligeira bagagem para na seguinte noite irem na esteira d<as>/e\ <emba>/algu\ma [↑das] embarcaç<ão>/oe\ns de costeagem que em Bragança fazem escala, e d’ali navegam para o Maranhão. <*Com>

– D’hoje [Desde hoje] ávante – disse Johnson a Laurentina – teu marido não é Josuah O’ Neill; é um estadista que estuda as confederaçoens, <e> republicas e imperios americanos, e se chama Jorge Sackville.  

– <Sacco vil ! que nome! – exclamou Nize> Mas qual é o teu verdadeiro nome, meu filho? – perguntou a sorrir-lhe meiguices a noiva, que já tinha ouvido, na cabana, chamar-lhe Johnson Fowler o inglez que o perseguia.

– O meu nome é <um mysterio!> legião! – disse elle

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lembrado da sua Biblia da infancia.

– Legião! – disse a menina do lago das tartarugas, que se não lembrava de Biblia nenhuma, nem os varios beneficiados lh’a inculcaram – Legião! é um nome bem esquipatico, meu amor! Legião… de quê?

– De anjos precipitados! – disse elle dramatisando-se.

– Abre [1 Abre-te] nuncio! Fazes-me medo com esses olhos! – accudiu a <melindrosa> [↑requebrada] americana com uns 2tregeitos <diabolicos> [↑1magicos] de <mulata> vencer legioens.

Abraçou-a mto amorosamente aquelle estadista, <que pela preça com q̃ se fez> [↑feito tanto de afogadilho que] parecia ser d’uns q̃ em Portugal se fazem.

     <Tomara, pois> Bafejou-lhes a sorte no embarque. <Nada lhes occorreu dean> Boa monção<1,> e excellente companhia. [1§] Entre os passageiros distinguia-se um brazileiro de Minas, chamado Joaquim Jose da Silva Xavier – mais notorio pela alcunha de «Tira-dentes». Trajava <de> insignias militares; fallava com os diversos passageiros em suas linguas, e revelava copia de conhecimentos hauridos em <aluxadas> [↑prolongadas] viagens na Europa e Estados-Unidos. Com o estadista Sackville conversava em correcto inglez, e de preferencia se dava [1 se dava com elle], bem q̃ <a †> [↑a presença] muito frequente de Laurentina nas palestras de Xavier [­lhe] inquietasse o socêgo<ado>. <Não onstante,> <o>/O\ <viajar>  viajante americano, faccionario exaltado da liberdade dos Estados Unidos, declamava rija e desassombradamte a favor da independencia do Brazil, com applauso do estadista a quem o applaudir era menos arriscado q̃ o denunciar sua ignorancia, discutindo com tão destro adversario57.

 


57 Na margem de pé, a tinta e autógrafas, parcelas de números: 4500...../45...../225.

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     D’ahi o affeiçoarse<-lhe> Silva Xavier, confidenciando-lhe  <pensamentos perigosissimos>  planos [­politicos] do maior melindre<.>/,\ <Q>/A\penas58> e instando-o a <fixar residencia> residir temporaria[mte] em <m>/M\inas-Geraes, provincia natal do [#expansivo] viajante. Ora, não tendo o estadista itinerario per<l>/f\ixo, senão q̃ andava, no dizer d’elle, perlustrando imperios, confederaçoens e republicas, consentiu na vontade do seu amigo.

Apresentado como homem de estado da Gram-Bretanha, <*cujas> insinuou-se na estima do celebrado republicano Jose Alves Maciel<1,> de S.João d’El Rei, dos trez poetas Thomaz Anto Gonzaga, Ignacio Jose de Alvarenga Peixoto e Claudio Manoel da Costa, á volta dos quaes <gravitavam satellites> se agrupavam os sujeitos mais distinctos em lettras <e arrôjo> [↑, na milicia e no arremêço] de aspiraçoens. Estes nomes eram o nucleo da conjuração republicana, acaudilhada pr Silva-Xavier, o Tira-dentes, que a todos incutia alento com as explosoens de sua temeraria eloquencia, sem recear-se [1 receiar-se] que os acovardados o delatassem. O depositario dos segredos da conjuração e até consultado em <*cir> traços geraes da republica ingleza, era Jorge Sackville q̃, á custa de leituras indigestamte <†> feitas para campar de entendido, logrou enganar a <boa fé> credibilide dos trez poetas, gente de mais estupida fé que a matroca do accaso atirou a cafrária [1 á cafraria] dos politicos. [§] O estimavel biographo dos «Varoens illustres do Brazil» compendia desta arte o accordam dos conspiradores de Minas: «Accordaram em criar uma republica a que se aggregassem as capitanias visinhas, q̃ quizessem seguir o seu exemplo e a sua sorte; em proclamar sua independencia de Portugal; em usar de uma

 


58 Foi aberto parágrafo em Apenas e, cancelada esta palavra, a  escrita regressou à linha anterior.

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bandeira com a insignia de um genio quebrando algemas; em franquear aos povos o districto prohibido dos diamantes; em eximir de direitos o ouro e as pedras preciosas; em dar plena <q>quitação de todas as quantias q̃ deviam os particulares á fazenda publica, etc. (x)

Promettia-lhes o estadista inglez protecção dos Estados-Unidos, onde disia conhecer de tu Washington, Boston e outros coripheus da independencia.

Era então governador da capitania o visconde de Barbacena, que farejava <prudentemente> espertamte o fermento revolucionario, de si tão pouco resguardado q̃ ate em banquetes se brindava á futura independencia. <O espião encarregado de devassar os segredos dos clubs era <um>[↑o] coronel Joaquim Silverio dos Reis> O coronel Silverio dos Reis, espião do governo, denunciou ao governador que um inglez de apellido Sackville, cazado com uma seductora paraense, que alguem reputava amante de Silva Xavier, não era estranho ao conluio revolucionario.

     O visconde mandou chamar ao seu palacio de Villa-Rica o inglez, e principiou lamentando que os vinculos de aliança q̃ felizmte <rig> uniam Portugal e Gram-Bretanha [1 Gram-Bratanha], lhe não permittissem usar com um inglez interventor na politica alheia mais severo castigo que uma advertencia á sua rasão de homem esclarecido e outra á sua dignide de marido enganado. Qto á razão, observava-lhe que se eximisse de ter parte em assembleas clandestinas de republicanos[1,] q̃ brevemte seriam punidos;

 


(x) Os varoens illustres do Brazil por J.M. Pereira da Silva, T. 2o [1 F. 20] pag. 31 e seg.59

 

59 A variante da 1ª edição é erro, como seria notório  (a uma F(olha ?) 20 não pode corresponder a página 31) mesmo que não pudessemos confrontar a obra citada. A página é a 3 e não 31. Camilo transcreve João Manuel Pereira da Silva, Os Varões Illustres Do Brazil Durante Os Tempos Coloniáes, Pariz, Livraria de A. Franck, Livraria de Guillaumin, 1858.

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qto á sua dignidade, lastimava que um valdevinos, corredor das sete partidas do mundo, e fomentador da desordem publica, ate ao seio das famas <leva> filtrasse a peçonha de sua desmoralisação, sendo elle snr Sackville um dos apontados <na>/pe\la opinião publica na qualide de victima, e sendo sua mulher uma das apontadas como <des>infamadoras do thalamo conjugal.

     Johnson Fowler ouviu em arrancos surdos d’alma e ohs[1!] inglezes, regougados das intranhas, <menos limpas e mais prof> as serenas observaçoens do visconde.

Calou-se o governador, medindo-o com severo lance de olhos. O covarde não carecia ser esporeado pelo ciume a fim de delatar os seus amigos: o terror q̃ lhe incutira a vista fulminante de Barbacena bastaria a romper aquelle ôdre de perversidade.

Principiou Johnson por declarar que respeitava grandemente a rainha de Portugal, e se considerava entre estrangeiros tão sympaticos mero observador de sua politica. Confessou ser verdade ter concorrido como simples curioso aos conciliabulos politicos dos republicanos, e colhido apontamentos para mais tarde escrever a historia dos desatinos dos facciosos que, sem causa justificada nem civilisação propria, queriam, remedando <os>/as\ <inglezes ame>  colonias inglezas, proclamar-se independentes. E neste rumo foi mareando até denunciar que o grito [1 brado] da revolta devia estalar em Villa-Rica, e elle visconde de Barbacena estava votado á morte[1,] por que os conjurados cederam unanimes ás violentas <p>/a\rengas do Tira-dentes.

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Depois, nomeou os conjurados, <p> até trinta de suas relaçoens. E, finalmente, obrigou-se a espiar o restante processo da revolta, se ao governador conviesse o segredo das revelaçoens feitas.

Ao visconde de Barbacena convinha o espião.

Os republicanos souberam q̃ o seu estadista havia sido <chamado> [↑levado] ao governador, e anciavam conhecer do motivo. Disse-lhes q̃ o visconde o chamára para lhe dar cartas vindas de Inglaterra <para> [↑á] sua mão com maior certeza de serem entregues.

Quem devia ler na alma de Johnson paginas de sangue era Laurentina, sua esposa, recebida á face da egreja <d>/n\o Maranhão. Os rancores q̃ lhe coriscavam nos olhos aterraram-na.

Forcejou, ainda assim, <contando com os>  [↑fiada <em> nos] seus <filtros> [↑amavios,] a dengosa americana em lhe rastrear o que qr q̃ fosse. Não vingou o intento. Johnson mostrava-lhe os dentes como um tigre mostra os colmilhos. Não era riso: era o projecto de trez facadas, reservadas para depois de <mais> embriagado em outro sangue.

     Presumem probabilidades que Joaqm Jose da Silva Xavier não levou as lampas ao fugitivo amante de certa Hiempsal que ficava com a capa dos sujeitos qdo lhe[s] não podia apanhar o coração. Aquella mulher tinha maldição comsigo, e sestro destruidor [­dos] mais virginaes coraçoens de anachoretas e eremitas famosos nos annaes d<e>/o\ pudor. Como qer q̃ fosse, eu não <affirmo nem nego> sei nada de auctoridade insuspeita, a não ser a do proprio marido, como ao diante se

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verá com o costumado horror destes escandalos.

XXXI [1 XXI]

     <Ao outro> No dia seguinte ao das primeiras carrancas truculentas de Johnson a Laurentina, sahiu de Minas para o Rio de Janro o Tira-dentes. O inglez desconfiou que sua mulher o avisára. Não duvidamos aceitar como bem fundada esta suspeita da crytica, sempre maligna, mas nem sempre aleivosa.

 Esta desconfiança azedou a atra-bilis de Johnson; mas <abafou-a> [↑<suffucou>  sopezou-a] no figado, para lhe não sahir ao pulso [↑intempestivamente] nas trez facadas programmaticas.

     Sem usar grandes rodeios[1,] soube a paragem de Silva Xavier no Rio de Janeiro. Na ida e volta das indagaçoens tractou a mulher com melhor sombra, e pediu-lhe o colar dos brilhantes para realisar um capital urgente ás suas empresas commerciaes em mercurio e anti<nom>/mon\io.

     Laurentina desconfiou que seu marido

[178]

lhe devolveria o colar em corda. E como era esperta e machucha, lançou suas contas pa esconjurar o perigo, <dissimulando> [↑cobrando alentos] quanto cabia em senhora habituada a <luctar> [↑pelejar] com vigarios-geraes, <trancando-se> [↑afortelesando-se] como em <fortalesa> [↑baluarte], <e> <†> rendendo-se, em ultimo recurso, <do seio das aguas, sem pejo das tartarugas> entre tartarugas, e mostrando-se mulher [1 creatura] amphybia, quanto era preciso.

     Um dia, Johnson visitou clandestinamente o governador; e, no dia immediato, foram expedidas trinta e tantas ordens de prisão para diversos pontos da capitania.

     <C>/S\eguiram logo para o Rio de Janeiro os mais e menos importantes prezos, <menos> [­excepto] o sexagenario poeta Claudio Mel da Costa[↑, o amador de Glaura,] que, ao fim do quarto dia de prizão, se suicidou no carcere de Villa Ricca. Alvarenga Peixoto, o poeta das Cartas Chilenas, [1, (?)] aos quarenta e nove annos de idade, foi lançado na masmorra das Cobras, a chorar saudades de esposa e quatro filh<os>/as\ ainda em infancia.

D’ahi foi levado a degredo em Am<a>/b\aca, e <d’ahi> [­de la], outra vez, ferrolhado nos carceres de Loanda, onde espirou (·)


(·) Supponho ser inedito o seguinte soneto dictado por Alvarenga Peixoto na masmorra das Cobras:

 

Eu não lastimo o proximo perigo,

Uma escura prizão, estreita e forte;

Lastimo as caras filhas, a consorte,

A perda irreparavel de um amigo.

[179]

 

A prisão não lastimo, outra vez digo[1,]

Nem o ver eminente o duro corte;

Que é ventura tambem achar a morte

Quando a vida so serve de castigo.

 

Ah! quem ja bem depressa acabar vira

Este enredo, este sonho, esta quimera

Que passa por verdade e é mentira…

 

Se filhas, se consorte não tivera,

E do amigo as virtudes possuira,

Só de vida um momento não quizera.

 

Extrahido dos MS de Pera Barradas [1 pereira e sousa].

[179]

     Thomaz Anto Gonzaga, o <poeta> [↑dulcissimo immortalisador] de  Marilia, ao fim de quinze annos de degredo em Moçambique, insandeceu e expirou, <espedaçando-se> <esp> <lace>lacerando-se com os proprios dentes e unhas. A maioria dos condemnados acabou <pelas costas> [↑ <com eguaes †> egualmte nas plagas] africanas.  <†>

Joaquim Jose da Silva Xavier <nos> <estava solto> [↑escondêra-se] no Rio de Janeiro, <apenas> presentindo por aviso de Laurentina a desgraça eminente. <Os quadrilheiros não vingariam encontral-o, se <Johnson> insistissem em> <A> A <caça> espionagem dos aguasis, <dirigida> guiada <da parte> por Johnson, subtrahiu uma [↑carta] indirecta para a <filha> [↑nympha] do Amazonas. Esta carta denunciava <a>/o\ <mister> refugio de Tira-dentes na <D>/R\ua dos Latoeiros, no Rio de Janeiro. Silva Xavier [↑foi prezo,] esperou trez annos q̃ lhe levantassem o cadafalso na arida esplanada que hoje se chama Praça da Constituição. Perdoavam-lhe a vida se confessasse contricção da culpa.

[180]

     Não gemeu nem supplicou. A <coragem> [­intrepidez] da morte ganhou-lhe <a>/o\ heroico renome q̃ não grangearia, se a idea [↑republicana] vingasse, e o passeasse [1 passeiasse] em triumpho a mesma <canalha> ralé que depois havia de crucifical-o.

Dizem q̃ a arvore da independencia do Brazil hauriu seiva d’aquelle sangue. [­Certamente<1.>] Portugal, alli e em toda a terra e mar onde arvorou <o>/a\ <estandarte> bandeira de Christo[1,] espontada em lança de barbaros, <cavou esta *igno> <cavou sua sepultura onde os>  <escavou> foi inconsciente instrumento da civilisação dos seus escravos. A rainha que assignou a condemnação da lenta morte de Gonzaga, de Alvarenga e Claudio Mel da Costa <*mereceu> é uma que os <compendios> livros historicos das escholas denominam  a piedosa.

Deixemos em paz as reaes cinzas, <d> e revertamos a[o] <Laurentina>  Rio de Janeiro, onde chegára <Jonh> Johnson Fowler [↑com Laurentina] no dia immediato ao do supplicio de Silva Xavier.

Muito de industria o implacavel marido – ja que um dia de <demora> [­atrazo] na derrota do navio <o privara>  [↑lhe tolhera] <d><1 o>  prazer de levar a esposa em frente do justiçado – <a hospedou em caza onde para log>  antes que ella podesse ouvir [↑fallar] da <noticia> [­↑morte] do Tira-dentes, a levou ao campo da forca, onde ainda pendia o cadaver exposto á contemplação de milhares de pessoas.

– Isto q̃ é!? tanta gente!... <1—> perguntou ella.

– Pois não vês o que é, menina? Olha! – E apontando-lhe pa a forca, disse-lhe a meia voz: – O teu amante

 
 
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