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O Demónio do Ouro - 1ª parte

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sua familia, [↑e dos credores,] foi-lhe cassado o direito de administrar os bens, e nomeada tutella. Procurou-se um homem de provada honra, a quem a gerencia dos arruinados bens do conde Ferrer fôsse confiada.

Johnson Fowler, negociante de medianos haveres e proverbial probidade, aceitou constrangidamente a proposta dos parentes e <caza>[­cre]dores do conde.

Estipuladas as pensoens do prodigo, Johnson recusou-se a augmental-as, sem temor das ameaças do conde. Um dia, o fidalgo[1,] exasperado contra as esquivanças de seu administrador, mandou-o chamar, encarecendo a urgencia do motivo. Apezar dos sustos e rogos da esposa e dos filhos, Johnson compareceu á hora marcada no palacio do conde. Foi recebido com insolente altivez, e injuriado na prezença de outros fidalgos que se estavam banqueteando com o ebrio perdulario. O inflexivel administrador redarguira ao insultador com severidade, sem deslizar do respeito devido ao fidalgo, e da prudencia q̃ cumpria guardar com um homem <embriagado> vinolento [1 violento]. [1§] Este, porém, hallucinado pelo orgulho que as bebidas sobre-excitaram, ordenou-lhe que se ajoelhasse, e lhe pedisse perdão, que ia morrer. [1§] — Se vou morrer, disse Johnson Fowler — ajoelharei; mas pa pedir perdão a Deus, e não ao meu assassino. [1§]  <1—> Proferidas estas palavras com firmeza, ajoelhou. E o conde, cambaleando, entrou a um [1 n’um] quarto, d’onde sahiu logo, aperrando uma pistola, cuja 

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carga entrou no coração de Johnson. Seguiu-se instantaneamente a morte.

O conde não tentou fugir, a pezar das instancias dos amigos. Nas declamaçoens q̃ bradava contra o cadaver, gloriava-se de haver desafrontado seus trinta avós insultados por um vilissimo peão. Nestas apostrophes vindicativas <,>/o\ encontraram os quadrilheiros, que se apossaram d’elle com o desasombro usado com os homicidas de baixa ralé.

Instaurou-se ao conde Ferrer processo na camara alta, cujo membro era. Poucos dias volvidos, o par do reino foi condemnado á forca. E por sobre a pena afrontosa, accresceu a ignominia da sentença q̃ mandou ser  [1 fosse] <entregue> o cadaver do reo entregue aos cirurgioens para <estu> disseçoens anatomicas. Allegaram seus amigos e parentes, ao pedirem o corpo do justiçado pa <a>/o\ jasigo de seu pai, q̃ elle era ainda parente da caza real. Debalde apellaram. O cadaver foi cortado a pedaços no amphitheatro do hospital.

     O filho do assassinado corria com o pequeno e mal prosperado negocio de seu pai, quando <William> [↑Roberto] Bearsley, <1[↑–]> um dos credores do conde, q̃ mais instara Johnson a aceitar a administração, e a final o demovêra de  sua repugnancia<1,> [↑—] para desagravar sua [1 a] consciencia honrada<,>[1—]o chamou <p>/a\o seu escriptorio e lhe deu um dos lugares subalternos a guarda-livros com grande ordenado. Volvidos poucos annos, elevou-o ao primeiro lo-

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gar no escriptorio e na sua confiança.

     Os grandes salarios do primeiro guarda-livros de caza tão abastada explicavam até certo ponto as demasias com q̃ Johnson se distinguia, qto a luxo, entre os homens de sua profissão. <Os> [↑Não obstante, os] amigos d<e>/o\ <seu pai> <[↑Joh]> [↑desventurado [↑administrador do] conde de Ferrer] , <não obstante,> rumorejavam q̃ o filho difficilmente guardaria ou passaria a netos a honra herdada de seu pai. O pompear tão improprio de seu officio, entre inglezes modestos, dava azo a desconfianças, se não da fidelide do guarda-livros, sem duvida de sua incapacidade para ajunctar mediocres haveres.

Bearsley  repellia qualquer insinuação mostrando confiar-se inteiramente no seu caixeiro, com quanto alguma vez, com delicados rodeios, lhe tocasse no prejuiso da immoderada ostentação. Johnson respondia que era solteiro, q̃ não tinha familia a seu cargo, por q̃ sua irman cazára rica, e sua mãe era fallecida; e acrescentava q̃ a liberalidade de seu patrão lhe dava largas a viver com os regalos invejados de pequenas almas.

E semelhante resposta nunca foi desmentida nos balanços da caza, examinados minudenciosamente por <William> B<rea>/ea\rsley, no discurso de doze annos.

     Quando Manoel Vieira orçava pelos desenove <1 annos>, Johnson promoveu o estimavel môço a seu segundo ajudante, com o beneplacito do patrão. Mais livre de encargos e mais endinheirado para divertir-se, Vieira, al-

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gumas veses, acompanhou o seu chefe ao Sadler’s wells theatre, <reedificado em 17<6>/5\5> onde se representavam peças nauticas <d>espectaculosas e grandemente  admirativas para o alumno de João Verissimo. Outras vezes deliciava-se menos no Royal Surrey theatre, que era áquelle tempo um circo equestre, onde Johnson Fowler, com grande espanto de Manoel e crytica dos ricos e pobres, se dispendia em valiosos brindes ás amazonas, e liberalidades de lord millionario aos clowns e palhaços.

Succede mto a miudo prender-se affectuosamte um homem presumpçoso e bizarro de outro q̃ é modesto e recolhido em si. Compadecerem-se assim duas indoles desconformes parece anomalia, e é tão somente uma entre as mtas incongruencias sobre [↑as] quaes parece fundamentar-se a ordem e o concerto deste mundo mysterioso como o seu Creador. Que um estouvado se captive de outro, bem é de ver e esperar; mas que um genio inquieto e apontado a coisas extraordinarias se compraza na estima de uma alma <serena>[↑reportada] e doce, <reportada> seria acto para grandes estranhesas, se não fosse usual. Talvez por q̃ a <*boa> compleição [↑amoravel] de Manoel Vieira lhe desse um ar de bondade e até de sincera admiração, quando o galhardo Johnson estadeava suas qualidades desvanecidas, <d’ahi> se formasse [↑d’ahi] entre a <ingen> candura de um e a jactancia do outro a liga q̃ nos não parece bem rasoavel. Aos homens galans, luxuosos e envaidecidos quadra bellamente o ar credulo e respeitoso, e

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sobre tudo maravilhado de pessoas em cujo semblante não resumbre inveja nem ironia.

     Manoel Vieira não applaudia nem censurava as bandarrices[↑ e o flaino aparalvilhado] do seu collega. Seduziam-no as graças fidalgas de Fowler, achava-o distincto entre os graduados em mais aforada jerarquia, contentava-se de lhe merecer umas certas confidencias, em que  elle era todo alma <e ouvidos> [↑attenciosa], pr que, a espaços, um nome de mulher, aureolado de phrases amorosas, lhe suscitava o nome de outra q̃, áquella hora, lhe estava escrevendo cartas dictadas por seu pai cego, ou inspiradas [1 ou lh’as escrevia inspirada] directamte de si mesma.

     Tambem Manoel fallava a Johnson de Eulalia;  e o seu taful amigo sorria-se, e murmurava: “Creancice”.

— Esses amores da aldeia — dizia-lhe o inglez —  são como flores da serra q̃ murcham depressa. Logo que mudaste o coração para as cidades, faz[e] de conta que a imagem da tua Eulalia montezinha hade ca viver tanto como um bouquet de boninas colhidas nas serras de Portugal. E então pa onde tu vieste com o amor da tua serraninha, rapaz! Para Londres, onde Deus poz as mais formosas mulheres do mundo, como indemnisaçaõ por <nos> não nos ter dado o sol!

Manoel Vieira replicava froixamente em honra da sua dama, e antes queria ouvir as confidencias de Johnson que sujeitar <os>/as\ seus/ua\s humildes esperanças <á>/a\[os] <dizeres> motejos do amigo. Não havia, de mais a mais, confronto possivel entre as amadas [↑miss<es>] do inglez e a pobre mocinha da Povoa de Lanhoso. As requestadas do primeiro guarda-livros de Bearsley eram herdeiras opulen-

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tas da classe commercial [↑de Regent Street] ou fidalgas com ascendentes coevos e quinhoeiros das proezas de João-sem-Terra.

Entre as primeiras havia uma que parecia prevalecer a todas no amor respeitoso de Johnson: era Anna Bearsley, filha unica de Jayme, residente em Bengala, e presumptiva herdeira de alguns milhoens, sendo ainda então solteiros, e ja avançados em idade, o tio de Londres, e o residente no Porto. Esta menina completava então a sua educação em Inglaterra, prefazendo desenove annos. Alguns dias sanctificados passava-os em caza do tio <William> [↑Roberto], lendo a Biblia, com aquella gravidade esculptural digna dos livros de Ezequiel, dos Reis, e outros poetas realistas das devassidoens de Babylonia.

Rarissimos acasos, no lapso de seis annos, occasionaram encontrar-se o caixeiro Manoel com miss Anna Bearsley. Elle, inclinando a fronte respeitosa, via <passa> saltar da carruagem aquella senhora alta, inflexa, hirta, loira, serena <e>, pautada nos movimentos e profundamente lugubre nos monossilabos. E ella, perpassando como sombra da sua sombra, não via por entre as espiraes dos carac<oens>óes <a cortezia de servos que> [↑as cortezias silenciosas] dos caixeiros, tirante as de Johnson Fowler a quem era permittido apertar-lhe a mão, articulando com difficuldade quatro confragosas syllabas inglezas.

O filho da illustre victima do conde Ferrer seria poeta, quando confidenciava a Manoel Vieira os seus intimos inlevos pr tal menina, se não amiudasse tanto os calculos do patrimonio que a indeusava <sob> com a divinisação de dois milhoens, ou talvez tres, de libras esterlinas. Dizia-lhe então o <rapaz> portuguez que uma mulher

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com tanto dinheiro havia de <ser> dar menos felicide q̃ uma pobre. E, perguntando Johnson a explicação de tamanho absurdo, respondeu Manoel Vieira que das mulheres assim ricas a felicidade procedia da riqueza e não d’ellas. Com a qual resposta o inglez desatava risadas mto judiciosas, e por compaixão de philosopho tão <canhestro> [↑escuramte esquisito] ensinava-o a considerar a mulher <rica> [↑opulenta] a compensação unica de q̃ a Providencia nos indemnisava do peccado de Eva, por cauza de qm a raça humana fôra condemnada  a cavar ouro nas minas, com o rosto suado e sujo. Manoel, ouvindo isto, comparava as maximas sanctas de João Verissimo, e imaginava que as neblinas de Londres não deixavam entrever o ceo para onde <1 olhava> o pobre mestre-escola da Povoa, em busca de Deus [1 da Povoa divisava Deus].

Neste em meio, appareceram pretendentes á mão de Anna Bearsley. Da camara dos lords, um fidalgo escossez, o mais grado dos deseseis que a Escossia enviára ao parlamto, rivalisava com Warren Hastings, homem poderoso q̃, ao diante, foi governador geral da Companhia da India.

<William> [↑Roberto] Bearsley oscillava entre os dois pretendentes, quando <Jonnson lhe pediu a filha. O millionario> [↑se lhes <o> antepoz um terceiro, <1 um>] filho [↑natural] do conde de Chesterfield, nascido <lon>/em\ França de <†> uns famosos amores q̃ o douto lord, amigo de Voltaire e Montesquieu, lá contrahira em annos juvenis. A este filho escrevêra o conde as cartas deshonestas e corruptoras q̃ <ainda ainda são lidas e dão a medida> <*os> vogaram impressas e dão á nação ingleza o exclusivo de um pai apostado a corromper seu filho, em publico, e em lettra redonda.

Estava este moço em Londres, entregue aos cuida-

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dos e sciencia do doutor <Guilherme>[↑William] Dodd, theologo de fama, <e>[↑poeta,] ministro da religião protestante, e notavel escriptor. O seu educando orçava ja pelos vinte e cinco annos. Tinha no coração os preceitos epistolares do pai, corroborados por doutrinas e exemplos do <metre>[↑preceptor]. O <doutor>[↑douto] Dodd era um <hypocr> dessimulado [1 dissimulado] libertino que offuscava com ouro as vistas das testemunhas dos seus desenfreamentos. Esse ouro decerto não era seu. Os bens que mordomisava ia-os desfalcando, [↑sob] pretexto de accudir á honra d<os>/o\ <condes>[↑filho] de Chesterfield; e, como antevisse a quebra de haveres medianos, q̃ tanto seriam o patrimonio do seu educando, aconselhou-lhe e promoveu o cazamento com Anna Bearsley, uma das mais ricas burguezas de Londres.

Endereçou-se o doutor a <William>[↑Roberto] Bearsley, q̃ consultou seus irmãos e a sobrinha. Philippe, futuro conde, foi apresentado a miss Anna, que o amou, sem dar valia ás qualidades do nascimento, deslumbradas pela gentileza do <carg> fidalgo e graças do talento cultivadas pelo pedagogo. A resposta do pai e do tio confirmaram a da noiva.

     No entanto, Johnson Fowler, colhido de salto e derrubado da esperança em q̃ o haviam embalado <a> ambição e <o> orgulho, maquinou desfazer o cazamento pactuado, desaccreditando os costumes de Philippe em praticas com <William>[↑Roberto] B<rea>/ear\sley. Accusava-o de <perdul> prodigo, de esbanjador<,> de <†> seus bens, e futuro dissipador dos haveres de uma fama do commercio, á qual se ligava <para o> por infame cubiça, no proposito de <explicar  aos > [↑desculpar ante os] seus eguaes a desegualdade do cazamto pela <destruição> [↑posse] de alguns milhoens.

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<Ajunctou exemplos> Conseguiu abalar o animo do tio da noiva<.>/;\ <Abalou> mas não o demoveu da palavra dada. Ainda assim, Johnson insistiu <*na> em deslustrar o filho de Chesterfield, asseverando q̃ elle se dava pressa em cazar por q̃ estava perto o dia de pagar uma letra[1,] ja reformada no Banco, e cumpria que o pagamto improrogavel sahisse do cofre dos Bearsley.

<– Que importancia tem  essa lettra?>

<William> [↑Roberto] não redarguiu ao seu guarda-livros;  mas acreditou-o.

No mmo dia, dirigiu-se ao futuro esposo de sua sobrinha, e disse-lhe:

— Se tem alguma lettra a vencer no Banco, disponha dos meus recursos, e pague-a antes de cazar para  q̃ não se diga q̃ a pagou do dote de sua mulher.

— Não devo nada a ninguem — respondeu <F>/P\hilippe com o desasombro da verdade.

— Olhe que o enganaram, sñr  Johnson — disse Bearsley ao guarda-livros — Philippe não deve nada.

E o guarda-livros abriu serenamente a carteira e tirou d’ella uma copia do [1 de] Registro das lettras descontadas no Bank of England, pela qual se demonstrava estar a vencer-se uma de 5:000 libras, acceite por <F>/P\hilippe Dormer Stanhope de Chesterfield.

E acrescentou:

— Não sou calumniador; prezo mto a felicide de miss Anna Bearsley; mas, se me fosse mister calumniar alguem pa q̃ ella fosse feliz, nem assim o faria. Sou filho de Johnson Fowler, assassinado no seu posto de honra. 

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<William>[↑Roberto], apertando-lhe rijamente a mão, disse:

— Filho digno de tal pai!

Pouco depois, o educando do doutor <Guilherme>[↑William] Dodd recebia uma carta do negociante inglez com duas ou tres maximas á cêrca do vicio da mentira. Rematava a breve missiva desligando-se o signatario do compromisso visto que a mentira de Philippe Chesterfield, fidalgo de vetusta linhagem, auctorisava e absolvia a transgressão da palavra de um plebeu.

Philippe, sem deferir tempo, apresentou-se a <William>[↑Roberto] Bearsley, exigindo com justa altivez uma satisfação em prezença de testemunhas. O negociante, obrigado pela sobranceria do fidalgo, offereceu a certidão do registro da lettra, depois de haver referido o q̃ passára com o destinado <sob> marido de sua sobrinha. O moço negou firmemente a authenticidade d<o>/a\ <r>/c\ertidão, e convidou Bearsley e as testemunhas a irem ao Banco n’aquelle momento.

Assim se fez.

Foi apresentada a certidão e conferida com o registro: achou-se ser verdadeiro o traslado. Pediram a lettra para exame. Philippe tomou-a entre as mãos convulsas, attentou n’ella com os olhos torvos e congestionados, largou-a, <deu mão ao> afincou os dedos nas fontes e bradou:

— Eu não escrevi esta assignatura; pela ma honra o juro! E, se não poder provar q̃ a massignatura foi falsificada, matar-me-hei!

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As <lagrimas> contorsoens de assombro e colera eram mais persuasivas que o protesto do suicidio em um paiz onde o spleen matava mais gente q̃ o receio da deshonra.

<William> [↑Roberto] e os circumstantes encaravam [↑com mediana sensibilide] <as>/o\ <contorsoens> <[↑agita]> [↑phrenesi] do afflicto moço <com pouca <[↑mediana]> sensibilidade>. Um dos directores prezentes lembrava-se de qm havia sido o honrado portador da lettra; por isso mesmo, a probide do filho do conde se lhe figurava suspeitissima.

Neste comenos, Bearsley perguntou se seria possivel descobrir-se o apresentante d’aquella lettra a desconto.

— É; — respondeu austeramte o director.

— Quem ? — exclamou com vehemencia Philippe.

— Foi o honrado douctor <Guilherme>[↑William] Dodd — disse o banqueiro.

— Dodd! — volveu o mancebo. E, voltado pa uma das testemunhas, continuou precipitando as palavras: — Entre na ma carruagem, vá procurar o doutor Dodd, e diga-lhe q̃ eu o estou esperando aqui.

Esta deliberação impressionou favoravelmente <William>[↑Roberto], apezar da boa fama do doutor.

— V. Exa suspeita que o seu honesto preceptor lhe roubasse a firma? — perguntou o banqro ao filho de <l>/L\ord Chesterfield.

— Sim — respondeu altaneiramte o fidalgo.

— Offende acerbamte um homem de bem — volveu o banqueiro.

— E o snr — tornou  Philippe  [o môço]— me dará a mim contas da valia em q̃ tem o meu caracter, infamando-me de calumnia-13

 


13 Na margem inferior, a tinta, da mão de Camilo: 41.

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dor!

Interveio o respeitavel Bearsley na altercação chamando de parte Philippe[1,] a fim de lhe pedir q̃ não alcunhasse de falsificador de firmas o doutor Dodd, sem sufficientes provas.

Entretanto, volveu a pessoa encarregada de conduzir o preceptor, e disse q̃, dada a ordem ao doutor, este quizera saber o fim pa q̃ era chamado; e, como o enviado o informasse por alto, da questão da lettra, <o dou>  <Guilherme> [↑William] Dodd [Chesterfield William Dodd], arrancando um grito, cahira sem sentidos.

Ouvido isto, <1 Philippe> deu ordem q̃ o trouxessem prezo, por q̃ ja não sahiria d’ali sem completa desafronta. Accercaram-no então as pessoas, q̃ ja eram muitas[1,] attrahidas pela novide do conflicto, pedindo-lhe q̃ se considerasse illibado da minima desconfiança. Pôde mto com elle <William>[↑Roberto], q̃ o levou pelo braço, e conduziu para sua casa, desopprimindo-se do gravame q̃ lhe dava o ter injuriado o noivo de sua sobrinha.

Pouco depois, o ministro ecclesiastico, [↑o capellão da casa real,] o doutor theologo, o <litterato>[↑poeta] eminente <Guilherme>[↑William] Dodd era recolhido á cadeia de Newgate, a [↑de] mais severa e temerosa catadura entre tod<a>/o\s <a>/o\s carceres de Lon-

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dres. Em quanto o processo por falsificação precorria [1 percorria] os tramites legaes, Dodd, confiado no rei, nos admiradores de seu espirito e até na generosidade do discipulo, esperava o perdão. Era, pa em pouco o diser, poeta aquelle desventurado q̃ confiava em tanta coisa, alli, naquella terra de Londres, onde á volta d’um prezo de Newgate eram mais os algoses q̃ os amigos. Entretinha-se elle  na cadeia a escrever um livro q̃ ainda hoje é lido com admiração: Pensamentos escriptos no carcere. Mal tinha fechado a sua melhor obra, vestiram-lhe a alva, e inforcaram-o, sem impedimento de haver a Corporação de Londres pedido ao rei o perdão do infeliz doutor.

Eis aqui um<a forca> [↑cadaver] pezando, de <1 qual> tal modo, sobre a consciencia de Johnson Fowler. Dizia-se que n<a>/o\ <gaveta> [↑contador] do suppliciado appareceram 4:500 libras destinadas a resgatar a lettra falsificada. Com mais alguns mezes de vida aquelle homem, justiçado aos 48 annos, <[↑em 1777]>14 poderia morrer com exterioridades de honrado.

Quanto a Philippe Chesterfield, lavado das manchas q̃ o tornavam indigno de miss Anna Bearsley, foi acariciado por ella e seu tio; mas os fidalgos seus parentes improperaram-lhe a baixeza de ligar-se com a sobrinha do villão q̃ lhe duvidára da honra. Se elle a amava, maior triumpho alcançou a soberba de raça. Philippe fez saber a[o] <Roberto Be> commerciante

 


14 <[↑em 1777]>: a data foi cancelada por manifesto anacronismo. Os acontecimentos passam-se em 1764, ou pouco depois (v. nota ao fl.64), ano incompatível com a data histórica da morte de William Dodd (1777).

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que uma fortissima rasão o impedia de lhe cazar com a sobrinha. «Se o snr Roberto — escrevia o fidalgo — podesse usar uma espada, e aventurar a sua vida a trôco de outra q̃ tem na terra nome illustre, bater-nos-hiamos em desforço de uma [↑ja agora] insanavel  injuria á ma dignide. Depois, se eu sahisse do campo com vida, iria offerecêl-a sem nodoa a miss Anna <B> Chesterfield. D’outro modo, se eu não posso armar cavalleiro o snr Roberto, tambem não posso descer a nobilitar qm me injuriou, matando-o, ou morrendo.»

     Assim devia escrever um neto de Ricardo,—Coração de Leão!

 

 IX

 

Estavam um dia Johnson  e Vieira moralisando a sentença q̃ condemnou ao patibulo o doutor William Dodd.

Manoel lera-lhe os poemas erothicos, escriptos na juventude, e condoera-se d’aquelle bello talento <perdido> infamado pela ignominia do crime e da morte.

Disia Johnson:

— O poeta não diminue o odioso do falsificador. <Bello> Salutar exemplo aos q̃ nos trazem imbaidos com uma reputação panica!

— Funestissima habilidade a de imitar lettras! — observou Vieira.

— Essa habilidade é vulgarissima; mas 

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nenhum homem honrado se lembra que a tem. Queres tu ver?

     Johnson escreveu os dois nomes Manoel Vieira tão semelhante [1 similhante] á assignatura do outro, que nem uma linha faltava na alabarintada [alabyrintada] setra [lettra] com q̃ o discipulo de João Verissimo costumava <circundar>  [↑engradar] a sua assignatura. 

E continuou:

— Já vês q̃ esta habilidade é trivial. Queres ver a firma de Roberto Bearsley?

<E>/D\isendo, executou com a mesma dexteridade.

— E a do teu antigo patrão John? e a do Bearsley de Bengala?... Aqui as tens como se sahissem do punho d’elles... Ora agora, o homem de bem, q̃ se recreia nestas brincadeiras caligraphicas, quando acaba de as fazer, rasga-as, e nunca se lembra que por este caminho pode chegar á riqueza...

— Ou á forca... — ajunctou Mel Vieira.15

 

     Não saberia o filho da Carlota das Courellas dar a rasão de sua involuntaria desestima, desde aquella exibição de habilide, por Johnson Fowler! Aprehendeu o scismatico moço que os dotados de tão funesto engenho tinham predestinação sinistra, e estavam sempre em perigo de escorregar ao abysmo logo q̃ a desgraça lh’o abrisse aos pes. A só comsigo, <experimentou> [↑provou]  Vieira a mão na terrivel destreza de imitar assignaturas;

 


15 A linha de espaço deixada pelo autor no ms. é eliminada na 1ª ed.

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e, depois de malogradas tentativas, exultou e agradeceu a Deus sua [↑in<ha>/a\ptidão], como se o poder copial-as lhe houvesse de ser agouro de perdição.

D’ahi avante, Manoel Vieira dessimulava [1 dissimulava] occupaçoens urgentes de escripturação pa esquivar-se á camaradagem de Johnson em theatros e circos. O guarda-livros reparou na mudança precipitada do seu amigo, e começou de lhe devolver em fria reserva a costumada confiança.

Ag<i>/e\itou-se o ensejo e necessidade de ir um empregado da caza de Londres a Bengala. Ninguem de boamente aceitava a commissão; mas Mel Vieira pediu-a, com o proposito de se distancear do homem que principiava a inredal-o.

Roberto, que lhe conhecia o prestimo e actividade, agradeceu e acceitou o offerecimento, promettendo<-lhe> dobrar-lhe os salarios na sua volta da India, e triplicar-lh’os em Bengala, em qto la se conservasse.

— E pelo q̃ respeita ás mezadas de seus pais [paes adoptivos] — acrescentou o inglez — vá vmce na certeza que eu lh’as não desconto nos seus ordenados. Vmce hade ter futuro, sñr Manoel. Se um dia voltar a Portugal, hade levar a abundancia com q̃ nenhuma felicide <possa> [↑dêva] invejar.

— A pouco aspiro[1:] — disse Manoel — Logo que eu tenha um passadío modesto com q̃ possa viver remediadamte, pedirei licença a meus patroens para me retirar.

— Então vmce não quer estabelecer-se em Inglaterra? Pensa em retirar-se tão cedo, 

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e com tão pouco?

— Se <V Ssn> o snr Roberto me permitte, <con>[↑di]<to>/go\-lhe o meu plano.

— Diga, Manoel.

— O homem, que me acolheu orfão e mendigo, tem uma filha que eu destino pa minha esposa. Temos hoje vinte annos cada um, e desejamos ligar nossas vidas antes que a idade adiantada nos quebrante o prazer dos bens deste mundo. Pouco basta á abundancia de uma familia affeita áos rigores da pobreza. Eu tenho calculado que em <17<7>/6\8> [↑1770] posso ter de minhas  economias umas mil libras. Com esta quantia compro na minha terra uns bens que me rendem o necessario a uma vida parca, ou posso estabelecer-me com negocio ainda mais lucrativo que as terras.

— Muito bem delineou o seu futuro — accedeu Roberto, sorrindo amigavelmte ás reportadas ambiçoens do portuguez; — mas, se Vmece quer ja cazar com essa menina, quem o priva? Por q̃ não vai buscal-a a Portugal, e não vem continuar a sua carreira em Londres? Eu desisto de o enviar á India, apezar de me isso contrariar bastante; mas vá buscar sua mulher, e venha[1,] q̃ eu lhes prometto irem mais tarde com sobejos bens de fortuna.

— Acceito o offerecimento do snr Roberto depois q̃ voltar da India. < Altera o meu plano; mas nao > [↑Tencionei cazar aos ] vinte e cinco annos; altero o meu plano cazando aos vinte e trez, e ficarei em Londres[1,] onde tenho o meu se-

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gundo bem-feitor.

E, querendo beijar a mão do respeitavel velho, este o abraçou com alegre enthusiasmo.

— Preciso fallar-lhe com mta reserva; — disse-lhe Roberto — procure-me hoje á noite em ma caza.

Inquietava o animo de Vieira a reserva da pratica. Occorreu-lhe logo Johnson Fowler, por que, desde a morte  do doutor Dodd, observára que Roberto encarava de menos agra<da>/ci\ado aspecto o seu guarda-livros outr’ora tão bem-quisto.

Annunciou-se receoso [1 receioso] da melindrosa pte que ia ter em [1com]  um interrogatorio á sua consciencia <†> intransigente com as conveniencias.

Previu com acerto.

Roberto Bearsley principiou dando-se como bem informado da boa harmonia em que por espaço de cinco annos elle tinha convivido com Johnson, e d’aqui derivou a perguntar-lhe o conceito q̃ formava do seu collega.

     Manoel Vieira respondeu que até certo tempo se considerára honrado pela estima do seu superior na gerencia do escriptorio; porém, conforme o genio se lhe f<oi>/ôr\a <formando> [↑refazendo] e defi<n>/r\indo [1 definindo] com os annos, a intimidade esfriára de parte a parte, pr <motivos de in> discorda<rem>/ncia\ em inclinaçoens.

Apertado a responder o q̃ <acha>congecturava da probidade de Johnson, <respondeu> [↑disse] q̃ não sabia da menor quebra de fidelide <em> [↑nos] deveres de [1do] guarda-livros; e, qto a julgal-o capaz de os transgredir, <disse> [↑acrescentou] que todo <*o>  <juizo> [↑conceito], bom ou máo, a tal respto seria temerario e intempestivo.16

 

16 Na margem inferior, invertida, numeração autógrafa: 15. Tudo indica que Camilo numerava previamente as folhas mas nem sempre as usava pela ordem dessa primeira inscrição, razão pela qual, além destes números invertidos, há tantas emendas na foliação.

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 <Averiguou> [↑Escudrinhou] [Esquadrinhou] ainda o laconico inglez que rasoens moveriam Johnson a investigar no Banco as transacçoens de Philippe Chesterfield. [1§] Vieira deu mostras de enleio e talvez afflicção no seu silencio. Roberto, porém, attentando na perturbação do moço, apertou-lhe a mão, dizendo-lhe:

     — Ja respondeu, snr Manoel Vieira. Vá cuidar da sua bagagem, que parte amanhan para Bengala. Passados seis mezes, voltará. Reservo-lhe para então o logar de meu primeiro guarda-livros.

— Não permitta Deus q̃ eu venha occupar a posição do snr Fowler — objectou Manoel.

— Porque não ? O snr Johnson <mto>, quando sahir desta caza, hade ter outra posição ms adequada ás suas ambiçoens cavalheirosas.

Roberto Bearsley ergueu-se, dando por fechada a entrevista, e <Manoel Vieira sahiu> [↑o caixeiro retirou-se] descontente de si como se houvesse deposto contra a honestidade do seu collega para o substituir nas vantagens do emprêgo.

17<Vieira sahiu> [↑Sahiu Mel Vieira] para a India <em 177<67>/78\>.

<Deixando> Decorrido pouco tempo, Roberto <preveniu Johnson> empenhou as suas altas relaçoens <para obter> na obtenção de um emprego <civil> [↑aduaneiro], cujos rendimentos egualassem o ordenado do seu guarda-livros. Não lhe soffriam <os> [os] escrupulos da honra despedir o filho do seu infeliz amigo Fowler, sem lhe dar prompto e equivalente <arri> esteio. A cauza da despedida não tinha que ver com as informaçoens dadas por Vieira.  [1§] O tio de miss Anna Bearsley soubera de sua propria sobrinha que Johnson ousára declarar-lhe <mil> os seus  

 


17 A princeps deixa aqui uma linha de espaço.

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affectos, acompanhados de um prospecto de suicidio, se a sua adoração fosse repellida. O desatino havia sido enorme em proporção do grande amor q̃ a menina dedicava a Philippe Chesterfield. Um caso destes em qualquer paiz poderia disparar em tolice afortunada; mas em Inglaterra, sobre bestidade, era um crime de lezo-respeito, e um insulto á dupla dignide da familia e dos milhares de libras esterlinas.

     Johnson recebeu a demissão e a nova de ter sido despachado para logar importante da <secretaria do> Alfandega.

— Sou victima das intrigas de Manoel Vieira — disse elle a Roberto.

— Falta á verdade, snr Johnson —<respondeu> [↑volveu] o commerciante — Manoel Vieira é homem de bem.

— E eu não?

— O sñr não — redarguiu severamte Roberto[1.] — Isto q̃ lhe digo face a face sou incapaz de lh’o dizer nas costas. Proceda honestamente [1,] não para me desmentir, que eu não o accuso, mas para desmentir a opinião dos seus pares no trafico mercantil. Tenho pago a seu pai o q̃ em consciencia lhe devia. <Vmce de hora em diante>

— E eu pagarei a Mel Vieira o q̃ em consciencia lhe devo — retorquiu Johnson; e sahiu flammejando colera pelos olhos.

     Transferido para emprego que melhormente disia com as suas propensoens, Johnson Fowler era mais frequente em Green Park18, em Hyde Park19, e jardins de Kensington, no [↑Her] Majesty’s Theatre (theatro real) e na opera italiana. Por ahi lhe sahiram ao encontro muitas damas benemeritas da sua attenção, e mtas, por serem d<a>/o\ fri<a>/o\ tempera-

 


18 Green Park: sublinhado cancelado.

19 Hyde Park: sublinhado cancelado.

 
 
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