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O Demónio do Ouro - 1ª parte

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<tura br<y>/i\tannic<a>/o\> [↑mto saxonio], o não perceberam. Podiam jactar-se as mais selectas meninas d<o>/e\ o accenderem com pequeno consummo de faiscas dos seus olhos.

E, do mesmo passo q̃ lhe devoravam o coração, sentia o combustivel Johnson que o dinheiro soffria, por egual, a fusão volatil das suas idealidades. Os ordenados aduaneiros não comportavam o pompear a que se avezára, subsidiado pela cega confiança de Roberto. A crize manifestou-se [manisfestou-se], quando mais esperançado seguia uma irlandeza rica, <não sem causa  para> [↑e ja seguro de] a final agarrar a fortuna pelas tranças ruivas da <*funes> filha do Erin.

Na correnteza destes successos, voltou d<a>/e\ <India> [↑Islamabad, da provincia de Bengala,] Manoel Vieira, <e desde logo exerceu> [↑portador de horriveis novas, e desde logo exerceu] as funcçoens de primeiro guarda-livros d<os>/a\ <Bea>/ca\za Bearsley <e de terceiro secretario>.

Johnson, esporeado por inveja e odio, meditou vingar-se. A pobreza relativa e o descredito que as dividas insoluveis lhe aggravava, espicassavam-lhe o rancor ao  homem q̃ elle reputava o <aleg> delactor das suas avultadas despezas.

Deixemol-o tracejar a vingança. <†> O homem de quem elle fia o segredo da sua raiva e <†> pobreza é um robusto montanhez da Escossia, matula da alfandega, como cá diriamos, chamado Guilherme (William) Spigot.

     Ás pessoas lidas nos annaes da forca em Londres este nome deve espertar reminiscencias

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X

O commercio de Inglaterra nas possesoens indianas considerava-se perdido, quando Manoel Vieira voltou.

Os agentes da Companhia enriqueciam, <a custa do> roubando-a e dilacerando <a>/os\ <roub> indigenas. <A>Naquelle anno, os <monopolistas inglezes> [↑açabarcadores insulares] compraram todos os productos do paiz, quando os naturaes ja luctavam com a fome. <Exasperados pela mizeria> [↑Nas agonias da morte], os indios queimaram os armazens do arroz e <es>expiravam a milhares nas ruas das cidades, empestando o ar com a podridão dos cadaveres insepultos, onde não havia facil modo de os atirar á corrente do Ganges, como <no  Canada> em Calcuttá. N’outras partes concorriam os jackaes, os caens e abutres a devoral-os. O peixe era mortifero, por que os rios iam <envennenados> [↑apestados] pela corrupção dos corpos. O nome inglez soava como um grito de maldição no vasquejar dos moribundos. A Companhia das Indias sentiu-se subitamte anniquilada, e os Bearsley perderam nos incendios dos armazens, e no <roubo> [↑saque] dos seus conterraneos, grande, se não a maior parte dos seus haveres. Jayme, o pai de Anna, fôra assassinado pelos indigenas, arguido de haver motivado a fome em <Bengala> [↑Islamabad], comprando o arroz todo por baixo preço, quando a inclemencia do tempo prenunciava um anno esteril; mas <†>/o\ inglez fôra morto quando franqueava os seus depositos ás turbas ja desvairadas no delirio da vingança e voluptuosidade da carniceria.

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E, ao mesmo tempo que em Bengala fôra exterminada a caza Bearsley, Roberto, um dos maiores  accionistas da Companhia das Indias, se considerava pouco menos de perdido. Por maneira q̃ os colossaes haveres dos trez irmãos, a um <leve revolver> [↑rapido voltear] da <vol>  roda da fortuna, redusiram-se á [1 á á20] <mediania> [↑mediocride relativa] de cincoenta mil libras, em grande parte representadas na caza do Porto.

Encheu-se de mortal amargura o coração de Roberto,  e chamou a si[↑, do Porto,] John Bearsley, receando  q̃ a dor o <insandecesse> [↑dementasse]. Os empregados da caza de Londres, como inuteis, sahiram todos, exceptuados Manoel Vieira e alguns <pr> marçanos <†>/p\ouco dispendiosos.[1§] Por <estes> [↑aquelles] dias, <em que > Manoel, no seio da<quella> fama, <chor> [↑que] chorava o pai e irmão, <fôra> <[↑era]> [↑foi] o mensageiro das consolaçoens divinas. Era bello de maviosidade religiosa ver aquelle moço de vinte e um annos, entre dois velhos sem alento nem conformidade, despreciando os bens da vida, e ate injuriando a debilidade dos que resvalam, se o esteio de ouro lhes falha, como se fosse o bordão dos aleijados da alma! Expunha elle com unção de ministro evangelico a doutrina da paciencia e os beneficios que <achara no> lhe aufere [1 que aufere]  o homem q̃ Deus passou do regaço da opulencia <para> ás prezas da desgraça. E depois de encarecer o arnez impenetravel da resignação, arguia delicadamente os dois velhos q̃ se carpiam de pobres, tendo ainda de seu a <rique> <abundancia> mediania de vinte familias, <*1>/2\25 contos de reis!

 

20 Repetido no impresso com a mudança de linha (á/á).

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Os dois irmãos entre-olhavam-se em silencio, como corridos de sua pusillanimidade; depois, a intermittentes, recahiam na prostração moral, <relembrando> computando em verbas de milhares de libras as pêrdas de Bengala e as da Companhia da India[1.]

Deligentissimo [Diligentissimo] em zelar o restante da desfalcada «fortuna» de seus patroens, Manoel Vieira ia diariamente á alfandega despachar ou exportar generos de commercio entre Inglaterra e Portugal. Em um desses dias de fadiga não obrigatoria nem usual a guarda-livros, Johnson Fowler defrontou-se com o seu successor, e disse-lhe sarcasticamente:

— Era esse o officio que lhe cumpria, snr Manoel: despachante, e não guarda-livros. No meu tempo, esse encargo era exercido pelos aprendizes.

— É um trabalho honrado este como todos os trabalhos, snr Johnson — respondeu serenamente o provocado.

— Pelo q̃ observo — volveu o outro azedando a ironia — Vmce colheu menos do q̃ esperava [esperara] da sua espionagem e da denuncia.

— Nem espião nem denunciante — replicou Manoel, demudado o semblante — Eu não tinha q̃ denunciar da vida do snr Johnson quando fui enviado á India; hoje, porém, se me perguntarem q̃ idea fórmo do seu caracter, direi q̃ Vmce é um calumniador, com capacidade para maiores infamias[1.]

Johnson remetteu, contra o portuguez, de punhos cerrados, n’aquella attitude do box,

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tão dilecta da gente [↑ingleza] finamte educada em varia esgrima. Vieira retrahiu a face ás duas punhadas q̃ ainda o colheram de esconso, e atirou um admiravel pontapé lusitano ao baixo ventre do <insular> [↑filho de Albião], e tão a ponto, em circumstancias apuradas, q̃ o adversario, ladeando, foi sentar-se, com as mãos aconchegadas da barriga contusa.

Manoel Vieira foi prezo<1,> e interrogado. Disse quem era, e explicou o seu procedimto em defeza de tão injusta offensa. Abonaram-no as testemunhas presenciaes do acto, e o <caract> nome <honra> <so> venerado de [dos] seus patroens.

     Eram passadas duas semanas, em fevereiro de 177<9>/3\, quando <Manoel Viei> o guarda-livros, sobre qm pesava grande tarefa, todas as noites fasia sarão [1 serão] no escriptorio, acompanhado de um ajudante. Em uma dessas noites, por volta da uma hora, lhe <disse> [↑pediu] o ajudante se o deixava sahir por que sua mulher estava <de cama> [↑inferma] com um filho de trez mezes nos braços.

— Por q̃ m’o não disse, que eu ja o teria dispensado? — accudiu Vieira, despedindo-o affectuosamente.

O empregado sahiu; e, apenas transpoz o limiar da porta, foi assaltado por um embuçado [1,] que lhe cravou um punhal na garganta. Manoel ouviu os gritos abafados, correu á rua, viu o homem <prostrado> [↑agonisante], seguiu a todo correr um <hom> vulto q̃ [qui] fugia, gritou, e, a poucos passos, era seguido de polic<em>/ias\ que esbarraram n’outros entre os quaes se achava escabujando o assassino.

Chamava-se o facinora Guilherme Spigot, que alguns <agentes> [↑empregados] de policia disse-

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ram ser matula da alfandega e creado de Johnson Fowler.

     No dia seguinte, Johnson Fowler não existia em Londres; porém, as <pesquizas> [↑indagaçoens] da policia descobriram que elle, dias antes, havia tirado passaporte para <Portugal> [↑Canadá]; e outras mais particularisadas [↑pesquisas] <ref> colheram q̃ o fugitivo, <accusado> [↑ja denunciado] pelo seu cumplice no carcere, na ante-vespera da sahida[1,] comprára brilhantes de <alto p> <gra> mtos quilates, e dispendera largamente em uma ceia concorrida de mulheres e homens de notavel devassidão e luxo.  

     Quase [1Quasi] simultaneamente [↑com taes novas] foi apresentada uma lettra vencida de 2:000 lb [1 duas mil libras]  a Roberto Bearsley.

O velho examinou-a, e expediu um grito.

Chamou Vieira, e perguntou:

— Que é isto!?

— É a sua firma falsificada — respondeu o caixeiro, e acrescentou: — quantas <h>/s\erão depois d’esta?

— Como? — exclamou Roberto — suspeita que me roubaram tudo, Manoel?

— Suspeito, snr  Roberto, que Johnson lhe roubou a firma. Tem so esta lettra? — perguntou <Manoel> [↑Vieira] ao <guarda-livros> [↑recebedor] do banqueiro.

     — Não sei<1;> <mas> com certeza, mas desconfio q̃ sim [1 não]: vou saber; presumo q̃ são mais as lettras com vencimentos a intervalos de tres mezes[1.]

No entanto, havia pouco q̃ esperar da deliberação rasoavel dos dois velhos. Choravam, repelavam-se, e cada qual de per si pensava em morrer, sem atinar com

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outra evasiva mais honrosa. Manoel Vieira pediu que delegassem n’elle o expediente d’aquelle negocio, lembrando-lhes q̃ só uma grande serenidade de animo lhes valeria no conflicto de serem alcunhados de negociantes fraudulentos, visto q̃ não tinham um reo que  os justificasse no patibulo, assim como William Dodd justificára Philippe Chesterfield.

     Voltou o recebedor das lettras, disendo ao guarda-livros que existiam dez, sommando 40:000 [quarenta mil] libras, e todas estavam devidamte reconhecidas e legalisadas. Perguntou Vieira se o apresentante fôra reconhecido. Respondeu que as lettras haviam sido <appresentadas  umas por Johnson Fo> descontadas por diversos negociantes.

O nome de Johnson Fowler não foi pronunciado.

Manoel Vieira pagou a primeira lettra de 2:000 lb [1 duas mil libras], e asseverou o pagamento das q̃ se fossem vencendo.

     Corria rapido, noentanto, [↑em Old-Baylei,] o julgamento de Guilherme Spigot, que confessou ser <enviado> [↑ indusido] por <Jo> seu amo e compadre Fowler a matar o guarda-livros de Roberto Bearsley, e [↑q̃ por engano] matára outro <pr engano> . <O jury deu como provado o crime> [↑A poucas voltas e nenhumas trapaças, o jury decidiu], e o assassino foi condemnado <á>/a\ <f>morrer na forca. (·)

 


(·)  Traslada-se do manuscripto donde são extrahidas as bazes essenciaes deste romance, a pagina q̃ diz respeito á sentença de Spigot. <Narra assim> [↑É o segte]: «Logo que o jury o achou criminoso, o juiz

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No ainda curto espaço deste livro ja se contam <quase> [↑pouco menos de] coevas, trez sentenças de morte. É justiçado Lord Ferrer, o fi-


pronunciou <a>/e\sta sentença: Guilherme Spigot, foste convencido de um crime horrivel e atroz. Assassinaste de animo frio, não provocado, e sem motivo. A desgraçada victima de tua ferocidade perdeu uma vida util á sua familia e á sociedade. Em breve morrerás tambem. Custa-me proferir a sentença fatal que vai acabar tua vida criminosa. Sexta feira será para ti o derradeiro dia deste mundo. Pensa qto mais horroroso será aquelle em q̃ hasde apparecer, perante o [↑justo] Juiz do genero humano, tincto de sangue do teu semelhante [1 similhante] ! Tens apenas dois dias de vida. Peço-te q̃ os empregues a implorar a misericordia do Ente Supremo, para q̃ te salve das penas eternas. Deste tribunal não esperes perdão. A lei te condemna a q̃ sejas condusido sexta feira de manhan ao logar das execuçoens publicas, onde seras enforcado ate q̃ a morte succeda, e depois teu corpo será entregue aos cirurgioens para ser anatomisado. Deus se compadeça da tua alma!

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dalgo de primeira linhagem; é justiçado William Dodd, ecclesiastico, douto e notavel homem de lettras; é justiçado Spigot <fe> assassino abjecto, de infima plebe. E todos trez na forca. E o conde e o matula, ambos retalhados no hospital, pa maior aviltamento, pr que ambos assassinaram, e a lei não os estremou. Isto dá a medida da moralidade que presidia á execução do codigo penal em Inglaterra, e a imparcialidade com q̃ a justiça criminal era destribuida [1 distribuida]. D’ahi, como de fonte perenne de respeito á justiça, derivaram os costumes exemplares que formam o cimento da prosperide, da força e respeitabilide da <Inglaterra> [↑Gran-Bretanha]. E, se isto q̃ se lê não fosse um livro futil e despretencioso, iriamos cavar á volta das raizes que seguram o robusto roble de seculos. Veriamos que os  inglezes regeitaram o uso das Pandectas inculcadas pelo clero; constantemte repelliram leis romanas, e mantiveram, antes do funccionalismo parlamentar, as leis inglezas chamadas [↑não] escriptas ou consuetudinarias, e por ellas deliberavam em todas as causas civeis e crimes.21

 

     Manes de Bartholo, de Cujacius, de João das Regras, e vos [↑principalmte, ó] illustres espiritos, vivos e sãos em corpos que deus conserve no parlamento portuguez, perdoai esta invasão de fronteiras a dentro da vossa

 

21 A linha de espaço seguinte é eliminada pela 1ª ed.

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sciencia de não inforcar assassinos. Assim é que, confundida, vos contempla a <desgraçada> pobre e desmoralisada Inglaterra, ó meus patricios, que abolistes a pena de morte, sem ter convencido moralmente o facinoroso que a ma vida é sagrada, e q̃ a faca de ponta bem puchada  peito22 dentro não é menor barbaride que o [↑laço de] esparto <na mão vigo> bem corrido sob o pezo do algoz.23 <§XI§> <“Convencei os senhores  assassinos de q̃ a vida humana é inviolavel “ – *disse  Alphonse Karr> [Ó paiz das grandes cabeças, por que não és tu feliz? É por q̃ o insigne dyplomatico padre Anto Vieira disse um dia <do pulpito,  como quem>:  «Os mais felises reinos não são aquelles q̃ tem as mais bem entendidas cabeças, senão aquelles q̃ tem as mais bem entendidas mãos.»]

     [Quanto a mãos, veja-se uma certa Arte... ou não se veja nada, que é o melhor.]

 XI

Era um espirito varonil Anna Bearsley. <Bater>Traspassavam-lhe o coração duas angustias incomparaveis com a do perdimento do patrimonio. [↑ Ao avisinhar-se o dia nupcial, perdeu] O homem que, primeiro e ultimo, amára, no silencio mysterioso de sua alma, <†> Philippe de Chesterfield  <ao avisinhar-se o dia de noivado, perdeu-o>. Nunca mais seus olhos o viram nem procuraram; nem queixume ou palavra magoada lhe ouviu seu tio. E, todavia, a <sua> [↑quella nobre] tristeza ou não tinha desafôgo, ou se consolava na esperança de ir chorar, ao lon-

 


22 peito: a primeira sílaba borrada.

23 Terminava aqui o capítulo e, após uma linha de espaço, dava-se início ao capítulo XI. No entanto, Camilo cancela a numeração do novo capítulo e volta atrás para prolongar o anterior, continuando na linha onde se detivera o texto.

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ge, no seio de seu pai, q̃ ella adorava <assima > [↑<mais> superiormte] <de>/ao\ homem <p>guiado <pela> pr mão da fatalidade ás serenas alegrias de sua <mocida> juventude. A morte desastrosa do pai impedreniu-a, <na terrivel espevitação da morte, que *nos bons> avincou-lhe a fronte <quase ma>, cavou-lhe as faces, apagou-lhe a <*boa> <bel> aureola da formosura, deixando-lhe  <os> [↑uns] traços de belleza aridos, deslusidos e glaciaes. Diziam-lhe q̃ chorasse, encarecendo-lhe o alivio do pranto. Ella não podia intender o louvor das lagrimas. Não sei quem disse q̃ o maior elogio das lagrimas,[1...] é choral-as. [§]Eis os dois profundos golpes q̃ lhe não deixaram sentir a dor da prevista pobreza.

     Logo que soube a situação extremamente penosa de seus tios, mandou chamar Manoel Vieira, e apresentou-lhe um cofre de joias, dizendo:

     — Estão aqui os infeites q̃ me deram meu pai e meus tios. Sei que os de minha  mãe valem 1<6>/0\:000 libras, e os meus não sei o valor q̃ tem. Aqui lh’os entrego para serem vendidos, e o producto converta-o o snr Vieira no commercio de meus tios.

— Não temos necessidade desse expediente, miss Anna Bearsley — disse <Manoel> o guarda-livros — Dos haveres da caza de Londres restam 5:000 libras, pagas as lettras falsas; mas a caza do Porto tem 10:000 em caixa; e, resolvido a liquidal-a o snr John, restringindo o negocio a Londres, augmenta consideravelmte o <fructo> capital[1,] com que se costeie um commercio mediano, mas a salvo de 2desastres 1grandes.

— Não obstante, como estes objectos me são inuteis — replicou miss Anna — insto que os venda, sem o beneplacito de meus tios, ou os conser-

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ve pa quando seja preciso vendêl-os. Eu creio que a decadencia d’esta caza ainda não tocou a balisa que a desventura lhe poz. Johnson Fowler hade abrir a sepultura de meus <dios> tios, aluindo as bazes da sua honra e do seu credito. Assim m’o jurou, quando eu lhe devolvi as infames propostas da sua mão de esposo. Os infortunios da ma fama procedem de mim, e Johnson foi o instrumento da fatalidade que nos desgraçou a todos. Por minha cauza foi ao patibulo William Dodd <e morreu assassinado o caixeiro, que>. Sem os ciumes de Johnson o preceptor de Philippe de Chesterfield não seria <julgado como> descoberto  e julgado falsificador de firmas. Salvou-se [↑depois]  a vida do snr Vieira, graças ao ceo; mas [1porém] morreu um pai de familias, e outro acabou na forca. Nenhuma destas calamidades se daria sem a minha existencia. A ultima, que nos ameaça — a pobreza — é ja uma quase [1quasi] insensivel affronta q̃ o destino me faz. O que eu, neste immenso infortunio, ainda posso desejar e pedir é q̃ meus tios não saibam o que é a miseria; e, se é forçoso q̃ o saibam, faça o snr  Vieira q̃ elles nunca experimentem o insulto d<a>/o\ <deshonra> opprobrio. Olhe que eu, hontem, escutei o que se passava no quarto de meu tio Roberto. <Procurava-se> [↑Pactuava-se] dar-me um destino, segurar-me a subsistencia, e concluir a serie das desventuras com dois suicidios[,] [1 ...] [comprehendeu as delicias que me esperam?]

— Não o hade permittir Deus — atalhou Vieira — Espero illibar a honra e prover abundantemente aos usos [1á decencia] desta <caza> [↑fama] com os recursos q̃ ainda temos.

Deteve-se Vieira uma longa pauza, como qm se recobra de receio, <como amante> [↑á semelhança de galanteador] não seguro da boa sombra q̃ lhe hade galardoar a declaração. Anna Bearsley, cuidando

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que Vieira esperava q̃ o despedisse, e com o silencio manifestava <desejo> [↑precisão] de ir a seus negocios, disse-lhe com <†> agrado:

— Talvez que eu lhe esteja occupando as horas do seu trabalho... <Queira> Póde retirar-se, se  tem [se em24] que fazer...

— Minha senhora — balbuciou o guarda-livros — ja que, proferindo o nome do snr Philippe <de> Chesterfield, me abriu occasião, e auctorisou a liberdade de lhe fallar n’este cavalheiro, peço licença para dizer a miss Anna Bearsley que o snr <de> Chesterfield ainda conserva por V. Exca[1 V.Sa] os sentimentos de cordeal estima que sentia qdo <visitava> [↑frequentava] esta caza...

— Como o sabe? Disse-lh’o quem? — atalhou vivissimamente a ingleza.

— Disse-m’o elle, minha senhora, no meu escriptorio, onde entrou, espreitando o ensejo de não se encontrar com o snr Roberto Bearsley. É um nobilissimo caracter. Quando soube que o patrimonio de V.Exca [1 V.Sa] soffrêra grande quebra, vem [1 veiu] dizer-me que, ha um anno, <trans> acceitára a transgressão da palavra de seu tio, e lh’a devolvêra com outra dignamte orgulhosa, pr que não <diss> o malsinasse o mundo de transigir com a injuria por que <depoz> [↑em seguida] [d]a injuria ia um  dote de dois milhoens. Agora, porém, que V.Exca [1 V.Sa] é comparativamte pobre, solicita de novo a licença <para> [↑de] a pedir a seus tios.

Anna demorou alguns segundos a resposta, e afinal disse com visivel embaraço:

— Não lhe cause estranhesa uma pergunta q̃ vou fazer-lhe: é indigna de mulher semelhante pergunta; mas verá q̃ a intenção não é vil. O <snr>/filh\o de Lord Chesterfield é rico?

 


24 se em: houve falha de impressão e não de composição, há espaço para o em falta e o se está deficientemente impresso.

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— Com quanto seja filho natural, o snr Philippe herdou  a maior parte dos bens estranhos  ao condado<.> [; uma irman q̃ tem foi opulentamte dotada e reside na America portugueza[1.]]25

— E, por tanto, é elle mais rico do que eu?

— Com toda a certeza.

— Pois, quando Philippe poder ser tão pobre como eu, concedo-lhe licença de me pedir aos meus pobres tios, a meu tio Roberto particularmte, a quem elle humilhou com tanta soberba como injustiça. Eu, quando era rica[1,] pode ser que tivesse a humildade de lhe perdoar a arrogancia de sua raça; hoje, que perdi mto e ainda assim desprezo o pouco q̃ me resta, quero q̃ o descendente dos lords de Chesterfield saiba<m> que estes plebeus assignados Bearsley, ha trez seculos, tem a nobreza de regeitar as caprichosas liberalidades do fidalgo, q̃ pr misericordia desce até elles.

     Reteve a explosão do orgulho, q̃ estava <exp> increpando, e murmurou, adoçando a voz:

— Faz-me bem a dedicação desse homem, se o não vejo atravez do prestigio da raça. Queria ser millionaria duas, trez vezes, como ja disseram q̃ eu fui. Queria desbaratar o meu dote na compra de uma coroa de duqueza, e pôr-lh’a debaixo dos pes para que elle a esmagasse, e eu em sua alma ficasse sendo sempre Anna <de> Bearsley, filha e neta de negociantes, que poderiam, desde o primeiro q̃ foi rico, herdar titulos de fidalguia, menos transmissiveis q̃ os da honra. Hoje não posso senão amal-o, amal-o como se elle tivesse morrido na hora em que me deu este anel, este symbolo da união de duas almas, uma das quaes, ainda q̃ me esqueça, eu a-

 


25 Escrito no espaço em branco disponível na linha e continuado na sublinha, estre acrescento é mediato e feito provavelmente só quando o autor fez partir Philippe Chesterfield para o Brasil. De resto, esta suposta filha do conde não é histórica, ao contrário do filho.

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creditarei sempre q̃ está no seio de  Deus, por que, repito, o homem q̃ eu amei... morreu, depois q̃ abriu as portas ás desventuras q̃ entraram de tropel nesta casa, q̃ era um paraizo no primeiro dia da sua vinda aqui. Tudo, porém, lhe perdôo; [1,] menos a sua compaixão.

Anna Bearsley ergueu-se enchugando os olhos por onde parece q̃ o coração chorava as altivezas do animo.

Manoel Vieira[1,] confuso e como estupefacto do lance que não sabia definir, em sua minguada pratica da vida e da indole inglesa, pediu as ordens de miss Anna e sahiu, <menos> mais propenso á reprovação que ao applauso d’aquella um tanto melodramatica esquivança com assomos de heroismo.

     Convem saber que a compleição espiritual de Manoel, filho da jornaleira, mendigo na infancia, e discipulo de um homem tão justo quanto o pode ser um observante seguidor das maximas de Jesus Christo, não era azada para se abysmar na admiração de casos que infeitam novellas, e dão realces ás biographias de pessoas extraordinarias. Como a vida laboriosa lhe não feriava horas de leitura amena, Manoel pouco menos de nada sabia das fantasias deste mundo, tirante as quatro peças nauticas que vira, em companhia de Johnson Fowler, no Sadler’s welle Theatre. As realidades terreaes figuravam-se-lhe em Londres pouco mais dramaticas q̃ na Povoa de Lanhoso. Em assumptos de amor, tão da competencia dos vinte e <um> [↑dois] annos, era elle sobremaneira descu-

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 rado e bizonho. A julgar-se por si, intendia que o amor era a fiança da felicide no matrimonio; mas, se lhe dissessem q̃ o amor tem uma escala ascendente desde a sympathia serena até ás diabruras delirantes, Manoel <intenderia o dito>[↑não quereria] acreditar que a felicide <d>conjugal se compadece com aquellas diabruras.

     Amava elle Eulalia, amava deveras, trabalhava para remir aquella familia de necessidades, tinha vingado o intento sobejamente, <†>  cuidava que a maior prova de sua gratidão aos pais era tambem a maior prova de amor á filha. E tudo isto era feito, pensado  e escripto serenamente. As saudades de Eulalia não lhe faziam levantar mão da escript<a>/u\[↑ração mercantil], nem lhe alteravam as horas de repouso, nem o impacientavam em pressas de cazar-se. Diz o leitor vulcanico e com muitos coraçoens ja pulvéreos no cinerario do seu peito, que este amor de Manoel Vieira poderia servir para entreter palestra á lareira de um vigario rural; mas que não tem bastantes scintillaçoens <para pegar> [↑que peguem] fogo á isca do papel e façam saltar as phrases em chispas ao coração de leitores, cujo interior está tão de gêlo que andam por la a patinhar os tedios.

     Não ha crytica mais bem feita e justa, conscienciosamente o digo. Este,  que é o heroe do romance, e ja de si tão espalmado de nome, este Manoel Vieira, reflectindo detidamente nas palavras de Anna Bearsley, formou d’aquella senhora o conceito q̃

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desejaria não fazer da mulher q̃ houvesse de ser sua. Avultou-lhe em soberba o q̃ aos espiritos de mais ideal quilate se figuraria acrizolado pundonor. Aquelle arrojar uma coroa ducal aos  tacoens das botas do marido, tendo comprado a coroa com o patrimonio de seus filhos, deu-lhe que scismar, e por pouco o não induz [1 induziu] a concluir q̃ as demasias do brio prendem com o primeiro passo do desvario [1 desatino]. Em summa, o montanhez de Lanhoso como q̃ ainda conservava o selvagismo nativo, e certo não podia ser personagem de romance que levasse o fito posto em espantar pessoas tão pouco espantadiças como hoje <d>/e\m dia são os comsummidores destes livros[1.]

     Cahiu-me a proposito esta entreaberta para despreoccupar quem quer que seja, qto ao caracter do meu heróe, <lhano e chão> o homem mais simples deste mundo, somte <mt> não vulgar n<os>/o\ destemor e preseverança [1 perseverança] com q̃ alimenta a coragem dos dois velhos <que o escutam como a filho e o <espe> <lhe obedecem>>. As scenas deste primeiro livro são bastantemte ricas da onda do ouro q̃ vai estrondeando desgraças na sua torrente; virá depois o outro livro, onde o ouro sacratíssimo do trabalho, empolgado pelos gryphos do demonio, e sacudido ás rebatinhas, <chovera <como a maldição> <maldiçoens> > alastrará de sangue o chão onde

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cahir, como a chuva de betume candente sobre as cidades malditas.

XII

Conforme o plano convencionado, sahiu de Londres para o Porto John Bearsley, afim de liquidar os seus haveres commerciaes armazenados, e transferir o capital em caixa.

Primeiramente, ordenou ao seu guarda-livros que, por via da Associação commercial ingleza[1,] enviasse o dinheiro existente.

– 500 libras – disse o guarda-livros.

– O quê?! – exclamou espavoridamente o inglez.

– Deixou VSa[1 V. m.ce] 10:000 libras; destas paguei 9:500 á sua ordem<, em quatro lettras ao> <pagas á vista.>.

– Pagas a quem, snr?

<L>/O\ guarda-livros apresentou <quatro ordens> [↑<uma> a ordem, em primeira e segunda via],  assignada<s> por John Bearsley & Irmão, passada<s> em Londres a favor de Sir Arnold Parker, general do exercito do Canadá.

– Roubado! – exclamou o velho – Roubado!...

E, pondo as mãos tremulas em <pos>attitude

 


26 No verso desta folha encontram-se linhas de números, a lápis, grosseiramente desenhados (8965,654,654,6/546546123/478196), seguidos da palavra Contarta. Aparentemente é a mesma mão que fez a anotação do fl. 57, atribuível ao tipógrafo.

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 supplicante, pediu a Deus que o fulminasse, com vozes soluçantes, cortadas por afflictivas ancias.

Passados instantes, bradou:

– Roubado por Johnson Fowler! pelo ladrão de toda a nossa fortuna tão honradamte adquirida! Oh meu Deus, que mal te fez esta infeliz familia?!..

– Roubado por Johnson Fowler… disse V Sa.[1 V. m.ce ] –  perguntou o guarda-livros.

– Sim…

–  Tem rasão para o acreditar.[1…] O snr Smith me disse, haverá quinze dias, q̃ encontrára em Miragaia o [↑ex] guarda-livros da caza de Londres, [1;] e, perguntando-lhe o que viera fazer a Portugal, Johnson titubara na resposta, disendo a final que ia a Lisboa commissionado ao ministro inglez. O sugeito, que me apresentou <a primeira> [↑a] ordem, disse-me que entrára <em> [↑na caza de] Londres com a quantia sacada. Era homem de quarenta annos pouco mais ou menos, <de bigode grisalho, e esmera>  com oculos azues, [e] trajado com esmero. No dia seguinte[1,] indo eu á alfandega, <vi> [↑encontrei] o mesmo homem com uma senhora pelo braço. Alguem[1,] que me viu comprimental-o, perguntou-me quem era o inglez, e me disse que, <aquando> no acto de lhe passarem vista á bagagem, causara espanto a porção de dinro em guineos que o viajante <levava para a America portuguesa> trazia em viagem.

John, ganhando alento com não sei q̃ lampejo de esperança, correu

[100]

a caza do consul inglez, <contou>[↑referiu]-lhe <a>/o\ <sua desgraça, e> [↑<o> enorme roubo q̃ soffrêra, e então] soube que <alli> [↓no consulado] não fôra visado passaporte de algum Sir Arnold Parker; mas que, em confronto das datas em q̃ a ordem fôra paga, encontrou-se registrado o passaporte de um Gower, <ministro protestante> padre catholico irlandez, que ia á Italia com sua irman.

     Divulgado o successo, e rigorosamente syndicada a sahida de Johnson Fowler[1,] descobriu-se que elle havia embarcado em navio hollandez com destino a Pernambuco, posto que o consignatario da caza <hollandeza> [↑nos Paizes-Baixos] dissesse q̃ o passageiro lhe apresentára o seu passaporte em que se intitulava George Jonathan [↑Holland], philosofo de profissão, natural de Rosenfeld, no ducado de Wurtemberg, cazado com Maria Van Hooft, natural, <natural>  de Middelbourg. Trez passaportes, com trez profissoens – uma soirée [1 soireé] que o infame passara [↑deleitosamte] a copiar assignaturas, não poupando a do sabio Jonathan, q̃, áquella hora, estava talvez lucubrando <passific> na sua [↑adiposa] obra <de pôlpa> intitulada Reflexoens philosophicas sobre o systema da natureza.

     Quando <as>/a\ <n>/c\arta de <Roberto>[↑John] Bearsley chegou a Londres, Roberto, por conselho dos medicos, tinha ido com a sobrinha para ares do [1 de] campo, auctorisando Manoel Vieira a abrir a correspondencia [↑e dar expediente ao negocio.] John <disia> [↑escrevia] que estava reunindo as migalhas <para poder> [↑no propósito firme de] transportar-se ao jasigo de seu pai, e aconselhava

 
 
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