O Demónio do Ouro - 1ª parte
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volta do pescoço, e chorou longo tempo em crebros soluços, com a face encostada ao peito d’elle.
Travaram um<a> seren<a>/o\ dialogo em francez, depois que o primeiro dique de lagrimas extravasou nas faces ja purpureadas da condessa.
Antes que Philippe lhe pedisse esclarecimentos da pessoa a quem seguia, contou Bertha, <com> [↑em] largos pormenores, o que vamos resumir.
O seu penultimo amante, abandonando-a, collocara-a na posição de proseguir na senda da fatalidade, na mendiguez ou no desfecho do suicidio – honra que nem todos [1 todas] <os>/as\ desgraçadas podem offerecer ao desprezo geral como desconto na execração q̃ se lhes deu em vida.
Havia muito q̃ era importunada por solicitaçoens de um homem, q̃ se assignava nas repetidas cartas Fowler[1.]
– Que ! Fowler! – exclamou Philippe – Johnson Fowler ?!
– Sim… Conhece este homem?
– Conheci um falsificador de firmas com esse nome; conheci, desgraçada Bertha, conheci o <homem que> ladrão das enormes riquezas dos Be<rsl>/ars\ley, que hoje vivem pobres nos arrabaldes de Londres…
– É esse… é esse… – exclamou a condessa, cobrindo o rosto com as mãos.
– Como succumbiu a tamanho infame, pobre senhora? – perguntou compassivamente Philippe.
– Oh! vergonha! – murmurou ella – Pergunta-me como eu succumbi? Por que elle era rico… por q̃ eu não podia ser pobre… não sabia <ser menos perdida de q̃> <donde> quem elle era, nem devia presumir que tal homem <era> fosse quem depois conheci…
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– Pois não é novidade isto q̃ lhe digo? < – Não, não é…35> [Já sabia…]
– Sabia que este homem sahiu de Inglaterra com um nome diverso do q̃ me déra; <em Lisboa> [↑no Porto] [1 no Porto, em Portugal,] adoptou outro, fazendo elle mesmo o seu passaporte; em Lisboa transformou-se em nome e posição; no Rio de Janeiro era da Escossia, aqui é irlandez, e eu em cada paragem, em cada novo paiz, sou obrigada a mudar de nome.
– Amou-a elle ao menos, condessa?
– Eu detestei-o, apenas elle me fez interrogaçoens vilipendiosas sobre o <meu passado> [↑q̃ eu fui], q̃ elle perfeitamte conhecia. Fingindo ciumes dos meus passados amantes, turturava-me, como para me fazer sentir que eu não merecia os brilhantes com que elle me comprára. O seu nome, Philippe <de> Chesterfield, era o que lhe servia para hervar o punhal da injuria <*em q̃>. Lembrava-se de nos ter visto nos theatros, e <enfama> <*me obr> vituperava a ma libertinagem, o escandalo da publicide. Uma vez <ajustou comigo> [↑impoz-me como preceito] que nunca o seu nome fosse proferido entre nós, não tanto por que eu havia sido a sua concubina publica e impudente, senão por que Chesterfield havia sido o perturbador da felicide da mulher [↑honesta] que elle amara, <sem quanta probide amar> primeira e ultima, me disia elle, para afundar bem o abysmo do meu aviltamento. <Em toda>
– Oh!... que miseravel!... que infamissimo eu me vira, se tal homem houvesse sido meu rival! – disse Chesterfield, precipitando o desfecho da narrativa com im-
35 O autor faz parágrafo para a resposta de Bertha e, cancelando-a, regressa à linha anterior.
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pacientes gestos.
Proseguiu Bertha de Nieuport, referindo que ultimamente solicitára de Johnson Fowler que lhe desse alguns recursos com que passasse á Europa, <visto> [ps] [1 sendo] que elle a ultrajára impondo-lhe q̃ se fingisse inferma pa o não seguir a Bragança, sabendo ella q̃ uma <portugueza> [↑americana] o acompanhava. Negou-lhe os meios pedidos, acrescentou Bertha, com o <justo> natural receio de que <ella> o denunciasse. Concluiu mostrando justo medo que <elle> Johnson <a assassinasse> [↑a final lhe tirasse a vida]<1,> quando lhe ella fosse estorvo aos seus planos, ou se temesse de ser descoberto. Finalmente, a des<graça>ditosa dama, ajoelhando aos pes do Chesterfield, lhe pedia que a <não desamparasse por> defendesse do seu algoz, e lhe esmolasse a protecção necessaria pa ir a França, onde o opprobrio e a fome lhe seriam suaves em comparação das angustias q̃ soffria n’aquelle desterro, esmagada <pela> por 3homem 1tão 2malvado.
Ergueu-a nos braços Philippe, consolando-a com a segurança de q̃ estava sob a protecção de um irmão. Depois, acompanhou-a ao sitio do hospedeiro francez. Em poucas palavras lhe <referiu> [↑informou] [1 o esclareceu] quem era [1 sobre quem fosse] o chamado O’ Neill. Commoveu-o, <esboçando> [↑referindo-lhe pr alto] os infortunios da condessa de <Nieuport> [↑Beaulieu], e combinou com o <attencioso> condoído Posteflui o preparar-se canoa que, sem delongas, levasse a condessa a caza de sua irman Isabel Brozeley.
<1§> Assim se fez.
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<XV>36
<O francez e alguns p>
Philippe ficou uma noite n<o>/a\ <sitio> rossa do Guamá, e ao outro dia, precavido de armas e recommendaçoens para o Sargento-mor que governava militar e civilmente Bragança, voltou ao local onde Johnson devia estar <concluindo> [↑entre] os refrigerantes cacoaes ideando architectonicamte o palacio, em braços d<e>/a\ feiticeira [↑Laurentina] Catanea.
Desembarcou de noite, e apresentou-se com <*Mr> [↑o] francez, q̃ o acompanhára, ao sargento-mor. Revelaram ao pasmado magistrado a biographia do chamado irlandez, q̃ estava <no>/em\ ajustes do mosteiro e terras que mediam seis leguas. Disse o Sargento-mor que o referido ladrão era seu hospede, e em sua caza estavam os bahus encerrando mto ouro e pedraria que o forasteiro lhe mostrára, bravateando q̃ não receava [1 receiava] a concorrencia do opulento fazendeiro do Pará, Barbosa Bacellar37, na compra dos terrenos[1.]
– O roubo, ou parte d’elle, ja nós temos seguro! – disse <o>/a\ <sar> auctoridade, ordenando logo que se reunisse a companhia para capturar o criminoso, e espingardeal-o immedi[a]tamte, com a costumada e summaria justiça usada em Bragança com os ladroens[↑… estrangeiros.]
36 Sob o cancelamento da capitulação, nota autógrafa: (Continua o capitulo, com intervalo de 3
faias).
37 Domingos Barbosa Bacellar foi fazendeiro dos mais ricos do Pará e elogiado por Fr. João Queirós, pela sua bondade, de que conta várias histórias (v. Memorias, pp. 196-198).
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Perguntou Chesterfield onde estava Johnson aquella [1áquella] hora da noute.
– N<o>/os\ meu[s] cacoá<l>/e\s, onde mandou construir uma barraca de páo, coberta de folhagem de <<A>/p\indoba> pindoba, e ornada interiormente de ricas <redes> [↑telas]. Lá está com uma rapariga de <*bom valimto> boa familia e melhor cara, que o veio seguindo, e por ahi passeia <ornada> [↑ataviada] de diamantes e [↑arreio [1 arreios] de] plumas, tão descomposta e desbragada como as indias prostitutas do Macapá.
– Tem g<ei>/os\tos <or>/az\iaticos o homem! – disse Philippe[1,] [sorrindo] – Desejo que elle traslade pa Inglaterra essas delicias do oriente, a ver se la se implanta o genero. <Se continuo entre zom> Um favor de valia e moralidade peço ao snr Sargento-mor. Não nos convém que <o> [↑tal] gatuno seja morto, nem é de nossa competencia julgal-o em ultima estancia. Desejo que este exemplar appareça em Londres, e seja la bem visto do alto da forca. Alem de que, não havemos de ser nós os conductores e apprezentantes dos bahús onde deve estar grande parte dos haveres dos Bearsley. Por tanto rogo mto rogado o snr Sargento-mor que limite a sua auctoridade á prizão do falsificador de firmas, por q̃ vai n’isso o interesse publico <dos q> e o escarmento dos muitos infames q̃ lhe hão de assistir ao supplicio.
Assentiu o bravo militar ás consideraçoens judiciosas de Chesterfield; e, tomando trez soldados somente, desceu á margem do rio, onde Johnson, com ingleza excentricide, se comprazia de acalentar
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os somnos ao <*rumu> rouquejante piar das arapongas e girapongas, dos galleiroens, e g<a>/o\arázes e japis e outras aves de nomes egualmte poeticos.
Quando o sargento-mor assomou á porta da cabana, digna dos candidos amores do heroe de Bernardim de Saint-Pierre, o <†> sardanapalo, recostado em um almadraque de plumagens, ouvia <o poetico> Laurentina, a trigueira de olhos coruscantes[1,] cantar modinhas brazileiras, cujas coplas licenciosas pareciam ser das muzas d<os>/o\ [↑obsceno] Gregorio de Mattos Guerra. O sargento, que fora pé ante pé, ouviu as toadilhas impudicas, sem dar rumor de si, por q̃ Chesterfield lhe acenára que não interrompesse. O inglez, apezar dos luctos de sua alma, não quiz perder o lanço de tirar apontamento d’aquelle cazo, muito mais interessante com o recheio da[s] <cantoria> trovas locaes.
Terminad<a>/o\<a>/ o\ ultim<a>/o\ <trova> tonadilho, o digno militar, ferido em seu pudor, não pôde deixar de exclamar em voz ribombante:
– Pouca vergonha!
Johnson <sent> ergueu-se de salto, e defrontou-se com o invasor do <1 seu> ninho de galanteria, ajustando ao corpo as abas da <ab> tunica de [↑seda] cramesim, copiada do trajar domestico dos principes indostanicos.
– Está prezo, snr Fowler! – bradou o <energico> [↑bellicoso] sargento-mor <com intimativa portugueza de lei>.
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– Prêso!... – bradou atterrado Johnson quando se viu nomeado pelo seu authentico appellido – Eu não me chamo Fowler, snr sargento-mor<.>/,\ [sou O’Neill!...]
– Aqui está quem o reconhece – volveu o militar abrindo passagem a Philippe Chesterfield.
Johnson cravou os olhos pávidos no educando de William Dodd.
– Conhece-o? – perguntou a auctoride a Philippe.
– Conheci um Johnson Fowler com outra cara mais modestamente burgueza; mas, se eu podesse duvidar <que> da identidade da pessoa, bastaria a desenganar-me o depoimento incontestavel da condessa de <Nieuport> [↑Beaulieu]. Será auctoridade esta pessoa que citei, snr Johnson [↑Fowler], ex-guarda livros do snr Roberto Bearsley?
Inopinadamente, viram Fowler <romper> [↑arrancar] de um pulo contra uma pequena panoplia suspensa do tabique, e lançar mão de uma clavina de dois canos, que abocou ao peito de Philippe, aperrando-a; mas, Laurentina, com aquelle <natural> [↑usado] impeto de mulher <a quem a †> que cuida conjurar o perigo interpondo-se na lucta, abraçou-se <cora>/pre\cepitadamte no amante, dando á <cl>/ba\la da clavina uma direcção frustrada. E, ao mmo tempo, um dos trez indios armados, sem consultar o commandante, desfechou a espingarda <na fr> contra a testa de Johnson, salpicando [↑de sangue] o guadalmecim <da barraca de pedaços de cerebro dilace-> [↑que tapizava <o ch>/as\ paredes da barraca.]
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rado>
Philippe <desisitiu> dispensou de boamente o projecto de pôr em espectaculo a cabeça de Johnson em Londres. Com serenidade e cortezia britannica dirigiu-se á <consternada portugueza> [↑assombrada americana,] e disse-lhe galantemente:
– Devo<-lhe> a vida, menina<.>, <e>/á\ sua resolução de <abra> conter a ferocidade deste perversissimo homem. Asseguro-lhe que será conduzida a sua caza com todo o resguardo, e sob a protecção do snr sargento-mor.
Os indios, e outros que vieram attrahidos pela detonação do tiro, carrearam os objectos valiosos da barraca. Nenhum, porém, quiz considerar objecto portatil o cadaver de Johnson Fowler<, que n<o>/a\[↑madrugada do] dia seguinte foi carregado ao rio Guama, visto que o vigario da terra> [↑. O sargento-mor ordenou q̃ um soldado fizesse sentinella ao morto até [1 até á] hora de o sepultar; <no> mas, como o vigario d<a>/e\ <terra> Bragança] se recusa<va>/sse\ a dar cova de terra benta a um <homem> [↑herege] que se propunha comprar bens da egreja<,>/–\ e n’isto cifravam os seus canonicos reparos<.>/–\[↑ mandou a auctoride civil atirar o cadaver ao Guamá. [§] Nesta diligencia iam dois indios, que encontraram38
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o soldado, o qual lhes disse que, <ab> farto de esperar, atirára o <h>/la\drão ao rio.
Foi applaudida a resolução, e tanto civil como ecclesiasticamte louvada.]
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Inventariado o contheudo nos bahus de Johnson Fowler encontrou-se grande riqueza em ouro e pedraria, e tanta que Chesterfield calculou desfalcad<a>/o\ em <pequena parte> menos de <vinte> trinta contos <a>/o\ <q> roubo feito em Londres e no Porto.
Transportando para caza de sua irman os haveres restaurados dos Bearsley, Philippe deu-se pressa em ministrar soccorros á
38 Na margem direita, na vertical, delimitada por uma linha, a nota para o editor: volte para o verso da pagina. A adição continua no verso. No recto da folha, as variantes são introduzidas com vários recursos, ora cancelando e supralineando, ora emendando sobre palavras da primitiva redacção (recusa<va>/sse\), ora preenchendo o final da linha antes de parágrafo (Nesta diligencia iam dois indios, que encontraram), emendando a pontuação (travessas de separação, a primeira das quais sobre a primitiva vírgula). As variantes que aqui foram introduzidas são, obrigatoriamente, mediatas, pelo menos posteriores ao resto da página, uma vez que são supralineadas, inscritas em espaço branco deixado pela redacção anterior e ainda transportadas para o verso da folha.
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condessa de <Nieuport> [↑Beaulieu] para se passar a Marsêlha. Isabel acompanhou-a ao Pará, beijou-a commovida ao despedir-se, e teve o prazer de ouvir dos lábios d’aquella <infeliz> <vigesima Magdalena> regenerada estas palavras q̃ não mentiram:
– Os seus carinhos de senhora sem macula hãode remir-me aos olhos de Deus.
– E aos olhos da sociedade – disse-lhe a irman de Philippe.
Assim foi. Bertha viveu <ainda> longos annos em um mosteiro da Normandia, tão contricta de suas culpas q̃ ainda hoje em Calvados39, <dobados> [↑corridos] <cem> [↑oitenta] annos depois da morte d’aquella penitente, se conta, como em lenda, a historia da condessa Bertha, que <fora seduzida por um demonio, com feitio de homem, ás margens do Amazonas, e alli lhe mostrara> fugira ao marido com um <ing> inglez herege para as margens do Amazonas, e la vira o amante a pernear nas fauces de um jacaré que devia ser o demonio em pessoa, quanto um jacaré pode ter caracter pessoal.
Os poetas não <foram indiferentes a> [↑podiam ser estranhos á] lenda de Bertha. D<o>/e\ <jornal da Franca pedimos> um raro opusculo do tempo, traduzimos, ainda que mal, as ultimas <coplas> endechas do poemeto mais na voga:
……………………………
E quando a bella condessa
Abriu os olhos á fé
Foi <,> quando viu a cabeça
Nas fauces do jacaré,
Aquella cabeça impia
39 Região da baixa-Normandia, Caen.
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Onde o demonio mettêra
A sacrilega heresia
Que Henrique VIII perdêra.
Já o inglez todo é retalhos,
Não lhe resta inteiro um pé;
Eis que ella vê <sair> [↑<escapa> surgir] galhos
Da <fronte> [testa] do jacaré.
E [↑troveja] um brado <lhe brada:> <[então lhe tro]> <[¯canta]>: Ó «Bertha,
«O diabo é quem te espanta!
«Desperta, mulher, desperta!
«Vai ser monja, e serás sancta!»
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XV
<Repontaram dias de suave contentamento> [↑Renasce<u>ram, entretanto, serenos dias de conformide na cazinha campestre de Roberto Bearsley. Ja sobravam recursos para maiores regalias; mas miss Anna afeiçoara-se tanto áquillo q̃ ella chamava o cofrezinho das suas joias, que não dava azo a q̃ o tio Roberto lhe propozesse mudança de habitação ou melhoria de adornos, bem q̃ a sua antiga caza de Londres permanecesse ricamente mobilada.
<Para> N’esta caza ordenara Roberto que assentasse residencia Manoel Vieira, logo que voltasse de Portugal com sua mulher e seus sogros. Afim de cazar-se com Eulalia sahira de Inglaterra o guarda-livros em 17<85>/70\, aos <vinte e seis> [↑vinte e seis] annos de idade, depois de doze de apartamento.
A sua chegada á Povoa não foi festejada com as alegrias usuaes nas aldeias, á volta do brazileiro, como ja então disiam do mercador q̃ voltava das possessoens de alem-mar.
O jubilo era todo domestico, recolhido e silencioso. A caza florejava como o oratorio em dia de Maias. Todas as mezas e commodas estavam guarnecidas de toalhas de renda, desde mto costuradas por Eulalia para aquelle dia. João Verissimo, q̃ ja orçava pelos quarenta e seis annos, estava desfigurado, mto velho, todo encanecido, não á mingua dos bens exteriores da vida, mas acabado d’aquella velhice interior, e frio da alma, onde os olhos não côam raio
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de sol. Luiza, ao invez das camponezas bonitas q̃ temporãmente desbotam e se desformoseam, <era ainda aquella> conservava-se robusta, sadia e ainda frescassa.
Quanto a Eulalia, o maior encarecimto que de sua bellesa póde fazer-se foi Manoel Vieira que lh’o fez, dizendo que ella se parecia <em> na brancura e feitio do rosto com as senhoras inglezas.
Claro é que a idade e o pudor intervieram com os seus escrupulos na approximação d’aquelles noivos que se amavam desde creanças. [1§] João Verissimo, que cegára qdo elles eram meninos, e la no seu mundo interno os estava sempre vendo quaes os deixara, estranhava ouvir-lhes umas graves conversaçoens q̃ não eram as pueris bagatellas d’outro tempo. Contando Manoel <ao> particularides da vida de seus patroens, chegou ao ponto de confessar q̃ os seus haveres, depois de doze annos <tra> laboriosos, eram poucos. Os <seus> ordenados de guarda livros, que poderiam prefazer uns vinte contos, haviam sido mutilados por uma pêrda q̃ soffrêra em negocio de risco, alheio da massa commercial q̃ derigia [1 dirigia], pois, no receio da perda, não quizera expor <os *nego> cabedaes de seu patrão. [1§] Além d’isto, as mezadas abundantes que enviara á sua familia, <os> e soccorros que enviava a duas mulheres pobres de Courellas, q̃ lh’as pediram por alma de sua mãe d’elle, de qm eram irmans, e sobre tudo <a>/o\ melindros<a>/o\ <†>/d\esprendimto de sua probidade[1,] eram rasoens bastantes a explicar a pequenez dos seus têres.
Todavia, não se deplorava nem arguia a fortuna caprichosa; senão q̃ se considerava
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muito avantajado na carreira, e bastantemente remediado para occorrer á decência de sua familia em Londres.
João Verissimo folgava de passear <nas> nos arredores da Povoa de Lanhoso, pelo braço de Manoel, contando-lhe successos communs da vida das pessoas q̃ o filho da Carlota conhecêra. Em um desses passeios para a banda das Agras, onde Manoel amiudava suas visitas, um homem[1,] pobremente vestido, cambaleando como ebrio, velho e repulsivo nas feiçoens <† p> <alteradas> <esca> alteradas por <herpes enojosa> brotoeja herpetica, acercou-se d’elles, parou <a>/e\ncostando o peito ao cajado, e disse tartamudo:
– Ólá, João! amigo velho! não te vejo ha muito!... Como te vai?
– Vou vivendo, amigo…
– Queres beber? Ou pagas tu[1,] ou eu [1 ou pago eu]!
– Se precizas, aqui tens um tostão, que é qto levo; eu não bebo vinho, e tu não bebas de mais.
–Dá ca o tostão, amigo velho, cá bebo á tua saude e mais aqui do fidalgo das Agras – disse o encontradiço, cortejando o companheiro do cego com tregeitos do ebrio da baixa ralé.
E seguiu seu destino, atravancando o caminho com os movimentos desequilibrados das pernas mal assentes sobre grosseiros tamancos.
– Quem é este homem? – perguntou Manoel.
[§] João Verissimo balbuciou:
– É ahi um… um desgraçado… que eu conheci em melhor posição… É de longe… tu decerto não o conheceste…
A este tempo o ebrio desandou no seguimento de João, bradando:
– Ó sôr fidalgo, ó sôr fidalgo das Agras,
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espere ahi q̃ temos q̃ averiguar uma pendencia.
O cego fez um gesto de sobresalto e desgosto;[1,] depois, rodando o pescoço, disse:
– Vai com Deus, q̃ este <1 sñr> não é o fidalgo das Agras.
– Ah! não é ? então perdoará! <↑ bem q>… Não que, se fosse, eu vinha dizer-lhe que não me ande a botar a perder de todo la com o arcebispo, que pelos modos os das Agras, tambem me enterraram na relação ecclesiastica... <Ouviste,>[Ó] João<?>/,\ [fazes-me um favor?]
– Que queres, homem?
– Tu vais ás Agras?
– Talvez.
– Pois, se la fores, dize aos snres Mellos que eu ainda sei puchar por um gatilho, sendo necessario; e que o padre Bento <da Mó> [↑Ribeiro] não é p’ra graças, ouviste?
– Sim… adeus.
Tremia o braço do cego em contacto com o de Manoel Vieira, que <se contrahiu> [↑todo estremeceu] qdo ouviu as palavras padre Bento <da Mó> [↑Ribeiro].
– Ja sabes quem é o desgraçado… – disse João Verissimo. – Vês a divina Providencia, meu filho? Ali o tens castigado!
Marejaram-se de lagrimas os olhos do filho de Carlota, reparando no ebrio que la ao longe batia estrondosamte á porta de uma taverna. E alli se quedou n’aquelle spasmo, até q̃ á janella da caza <1<em>/a\> cuja porta o padre atirava rijas pontoadas, assomou uma mulher bradando:
– Ja lhe disse q̃ não abro a porta, q̃ não está ca o meu homem… A bebedeira acho q̃ lhe ficou de hontem! Ora ande, snr padre Bento, ponha-se ao fresco, antes q̃ meu homem lhe não chegue a camiza ao corpo!
O padre, floreando o fueiro, insultou a
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taverneira com os mais obscenos epitetos, e atirou-se de esguelha para um combro ensilveirado, <com o> [↑no] proposito talvez de cozer o seu vinho perto da taverna onde podesse depois <suar> [↑refrigerar] <o>/a\s <estomago> [↑guelas] abrazadas.
E Manoel Vieira viu assim aquelle homem q̃ era seu pai.
– Vem d’ahi, Manoel… – dizia-lhe o cego, repetidamte, puchando-o pelo braço.
– Se me dissessem a posição infeliz deste homem, eu tel-o-hia soccorrido… – murmurou o compassivo filho com a voz cheia de lagrimas.
– Soccorri-o eu, Mel, com parte da esmola que me mandavas. Não lhe vali, ninguem lhe valerá. Desejas saber como o padre Bento chegou a isto? Facilmente e depressa. Ha dois annos que é isso q̃ viste. Ha dez annos q̃ ja não tinha eido onde cahisse morto. Quando tu sahiste para Londres, as devassidoens de teu pai eram como as de outro qualquer homem de máos costumes; mas sobrepujavam as do mais reprehensivel padre. Se algum tempo aggravou as suas culpas, deante de Deus, com a hypocrisia, lá quando a mascara o abafava, arrancou-a, e fez da sua caza e da sua freguezia um grande alcouce. Parece q̃ esperava somente q̃ a mãe morresse para dar largas aos seus instinctos. Foram a Braga denuncias da prostituição de Rendufinho, e o padre foi suspenso das ordens. Desconfiou de qm fosse o denunciante, e deu-lhe um tiro, que não foi mortal. <Foi prezo> [↑Prenderam-no,] gastou mais de metade da sua <fortuna> [↑caza] para se livrar, e ao fim de trez annos de cadeia voltou para <casa> [↑a terra], ainda proihibido de exercer as ordens. Se para a cadeia entrou libertino, sahiu de la perdidissimo, impio, sacrilego e
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blasphemo. Tinha <uns poucos de filhinhos> [↑alguns filhos] de diversas mães. Os que <eram filhos> [↑nasceram] de mulheres pobres mendigavam; os das <lavradeiras> [↑fazendeiras], embora filhos de mães deshonradas, la tinham umas telhas que os cobrissem. <Muitas> [↑Algumas] pessoas lhe quizeram atalhar a completa ruina com a assistencia dos bons conselhos; e eu, por que havia sido seu condiscipulo, companheiro de caza e amigo, <vim aqui> [↑fui a Rendufinho] pelo braço de minha filha, pedir-lhe que tivesse mão da sua honra e de sua alma q̃ se abysmavam. Disse-me Eulalia q̃ <lhe> não <conseguira> [↑lhe divisára] no semblante <o> menor indicio de pezar. <Respondeu>[↑Replicou]-me, <a final, do encontro> [↑em conclusão], que os inimigos o tinham perdido; mas q̃ elle, quando voltasse á cadeia, havia de ter matado trez. Retirei-me desanimado, sentindo no coração a immensa dor de ser teu pai aquelle homem, e desejando q̃ nunca me tivesse lembrado indagar [↑de] qm <elle fosse> [↑ fosses filho], ou, pelo menos, q̃ nunca o tu soubesses. Por espaço de um anno, pouco se fallou do padre Bento; apenas de <tempo> [↑qdo] em vez se contava q̃ elle vendêra mais um campo, ou botára a perder mais uma mulher. Aqui, porem, ha seis annos correu que elle raptára uma donzella [↑nobre], filha de um <doutor> [↑fidalgo] de Garfe, e andava fugido com ella por Hespanha. Depois, soube-se que ja estava com ella em Rendufinho e q̃ tinha comsigo uma menina, filha da tal senhora. Mas, de repente, é prezo, espancado, ferido mortalmte, por que resistira com arma de fogo, e assim ensanguentado o trouxeram para a Povoa, e d’aqui o levaram <para> ás cadeias de Braga.
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Foi julgado e condemnado a <quatro> [↑trez] annos de prizão. Na <corren> passagem destes annos, vendeu tudo e hypothecou o patrimonio. Nesta apertada situação, principiei a soccorrêl-o tanto na cadeia, como fora. Fui ter com elle a Rendufinho, e encontrei-o embriagado, vociferando contra ceo e terra. Fallei-lhe em religião, em Deus, em honra, em arrependimento. Irritava-se <furiosa>freneticamente, e mandava-me sahir de sua caza, d’aquella caza q̃ eu conhecêra tão farta e cheia, e onde, a ultima vez q̃ la fui, me disseram q̃ não havia um tamborête, e tod<a>/o\s <a>/o\s <apres> utensilios era[m] uma espingarda e uma faca de mato. Aqui tens [↑a acerba historia], meu filho. Perdoa-me se te consterno; mas era forçoso q̃, cedo ou tarde, soubesses <isto> tudo.
– E os filhos? q̃ <fim levaram> destino tiveram essas creancinhas? – perguntou Mel Vieira[1.]
– Não posso responder-te com exactidão o destino q̃ tiveram todos os filhos deste infeliz. Dois d’elles pedi eu ao Leonardo Cigano que os arranjasse em lojas de negocio por essas terras q̃ elle corre. Por la estão em começo de vida. Outros mais novinhos não sei d’elles: devem viver com as mães. Outros são filhos de lavradeiras: la se arranjam melhor. A menina, filha da senhora de Garfe, foi com sua mãe para um Recolhimto de Braga, e por la estão, segundo ouvi contar.
– Pois, meu bom pai, – <p>/t\ornou o filho de Carlota – se poder descobrir as creanças, nas circumstancias em q̃ me conheceu, ou em melhores ainda, eu desejára, antes da nossa ida para Londres, deixar-
[13<7>/8\]
lhes algum soccorro.
– Bem hajas, virtuoso mancêbo! – exclamou o cego beijando-lhe a face – So assim podias dar-me alegria, <por ver que da historia triste q̃ te contei > ao cabo <desta> da negra narração q̃ te fiz; <Sem isto, se não obterei > ps que assim movi a tua caridade <como os> a favor dos pobres innocent<i>/es\<nhos>. Vou encarregar a tua Eulalia de os procurar. Verás como o anjo encontra depressa o esconderijo dos desgraçados…
– Em Rendufinho?
– Eu sei la, filho!... em Rendufinho e onde acontecer.
– Pois então, irei eu com ella ámanhan n’essa romaria.
XVI
Os noivos, ao alvorejar de um dia de <j>/J\ulho, sahiram da Povoa<,>/.\ <e a pé, como treze annos antes, <mas mto mais alegres e felizes q̃ d’aquella> <mas como em dias da *pobreza> <mas nem alegres, *somente *brinca> <folgando na>>. Iam taciturnos, porque Manoel Vieira não podia disfarçar a sua amargura desde aquelle espectaculo hediondo da abjecção de seu pai. Eulalia não sabia <consolar[-lhe] a tristeza ja do> distrahir-lhe o animo da <absorç> meditação intima <em que ia absorto> q̃ o inleiava.
– Se assim havias de soffrer entre nós, Ma-
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noel – disse-lhe cariciosamte Eulalia – eu antes queria que não viesses a Portugal, e Deus sabe <como eu> [↑que], há doze annos, lhe peço que te trouxesse para mim.
– Este soffrimento – <dis> respondeu o môço agraciando o aspecto – ainda q̃ eu podesse evital-o <iria procural-o> [↑procural-o-hia], sabendo q̃ existia a cauza d’elle. Maior seria a minha dor se, depois de eu estar em Londres comtigo, soubesse q̃ estavam aqui um <desgraçado> [↑velho] e umas creanças <a penar na mizeria> [↑em miseria] sendo eu, perante Deus, filho e irmão desses desgraçados.
Assim praticando, em assumptos tristes, aquelles dois noivos, ao repontar o sol de um dia tão inspirativo de namorados dizeres, chegaram a Rendufinho.
Manoel parou á porta do padre Bento, e disse a Eulalia que fosse a caza do alferes de Cima-de-Vila averiguar da existencia das creanças.
– Pois tu vais fallar com o padre!? – perguntou <Eulalia> [↑ella] com espanto.
– Vou, ma querida Eulalia; vai á tua á [1 vai tu á] missão dos innocentes, que eu ca vou á do reprobo.
Apartaram-se.
Entrou Manoel em um largo pateo, que ja não tinha porta, nem instrumento algum de agricultura. Olhou para uma escaleira de dois degráos que levavam á cozinha, e lembrou-se de ali estar sentado desoito annos antes, á espera de uma tigella de caldo e uma ração de borôa com que, aos domingos, a mãe do padre favorecia [↑de má catadura] o filho da sua de-
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functa criada.
Subiu um escadoz de boa cantaria que conduzia ao patim das salas da caza, sobr<anceiras>/epostas\ á cozinha e quartos dos criados. No patim estava um chapeo braguez esgarçado de [1 do] uso, e um varapáo no pavimento. A porta q̃ abria para o interior, lascada nas almofadas, e desengonçada, estava meio aberta. Bateu Manoel duas vezes na porta, e pediu licença para entrar[1,] depois q̃ lá de dentro uma voz rouca e estrouvinhada lhe perguntou quem era [1 quem estava alli].
– Entre quem é.
Entrou.
Viu um homem vestido sobre uma enxerga no chão, em uma vasta quadra com oito janellas de peitoril todas abertas.
Era seu pai.
Sentou-se padre <Manoel> [↑Bento] na enxerga, esfregando os olhos, que a brilhante claridade do sol parecia offender-lhe.
– Não conheço... <VSa – disse elle> – resmuneou o padre, desconfiando que <algum>[fosse] aguasil do juiz de fora <lhe vinha> [↑ a] intimar[↑-lhe] alguma citação inutil.
– Eu sou a pessoa que hontem acompanhava o seu amigo João Verissimo – disse Mel com a voz não firme.
– Hontem?... ah!... bem me lembro… bem me lembro…
E, disendo, ergueu-se da sordida cama, sacudindo as [↑arestas de] palh<as>/a\ moíd<as>/a\ [1 palhas moidas] q̃ lhe p[r]endiam <d>á roupa <enxovalhada e suja> [↑encodeada e rôta].
– Então VSa é destes sitios ? – prosseguiu o padre, reformando mais gratamente