O Demónio do Ouro - 1ª parte
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<A Herança de Londres> [↑O demonio do ouro]
romance original
por
Camillo Castello Branco
<Parte> [↑Tomo] primeir<a>/o\
I
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elle fiava a reconciliação [↑com a fama], o avô não quiz ser padrinho. A recuza doeu-lhe no coração de pai;[1,] mas levemte perturbou a serenide do homem probo. Dizia elle com a filha nos braços e as lagrimas na face: «Olha, mulher, se esta innocentinha não fez o milagre de me restituir a amisade de meus pais, é q̃ Deus o quer assim<.>/,\ [↑e não ha q̃ esperar.] Vivamos[1 ,] como até aqui do nosso trabalho[1.]»
– Pois sim; – dizia Luiza, menos paciente – mas teu pai é máo homem! isso é elle!
– Não é máo; é <ignorante> [↑do barro commum] – emendava o marido – Tinha vontade de ter um padre em caza, por que <um>[↑o lavrador] visinho ordenou <seu> [↑o] filho. Se este desejo procedesse do sentimto religioso, e não da vaidade, meu pai ter-me-hia obrigado a <espozar-te> [↑cazar comtigo,] <se eu quizesse> [↑a querer eu] mentir a Deus e á sociede, manchando o habito sacerdotal; mas a vaidade pode mais que o dever nas pobres almas ignorantes dos lavradores, onde a religião <entra quase sempre> não entra acompanhada dos preceitos de bem-viver neste mundo.
– Pois, sim, sim; – tornava Luisa, percebendo pouco das serenas reflexoens do <marido> [↑homem] –; <mas> teu pai é tão ruim de condição que te não hade deixar nada... Tu verás, João…
– Alguma coisa me deixará; e, se não deixar, Deus lhe não peça contas á sua alma, que eu por mim dou-as por saldadas.
Este filial e christianissimo proposito seria bastante util á alma do lavrador no outro mundo, para onde foi, depois de haver dado [↑o melhor] [d]o cazal a outro filho, e inredado em hypothecas [↑fraudulentas] o restante da fazenda, por taes artes q̃ João Verissimo apenas herdou umas courellas
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que lhe não rendiam o pão <para> [↑de] dois mezes. <Se> [↑Mas, se] os votos de Luiza <valeram> [↑pezarem na balança] <n>/d\o supremo juizo, <de Deus,> o lavrador penará no <inferno> [↑abysmo] eternamente<,><.>/,\ <↑> <A> <Praguejado foi elle> dado que o marido por sua parte, quando a esposa lhe praguejava o pai, 2pedisse 1mentalmente a Deus <que perdoasse> [↑perdão pa] <o>/a\ alma do defuncto, e tambem <a> [↑pa a] ambição desculpavel da mulher, que <creava ao seu> [↑aleitava <a> com] seio mal <alimentado> nutrido uma filha creada pa a extrema pobreza.
Esta filha era uma creança 3linda 1em 2extremo. <Ja> <a>/A\ mãe havia sido uma das mais bonitas moças de Geraz, <sendo que> [#onde as h<avi>/ou\ve de tal fama q̃ ja ] o padre Carvalho na Chorographia, nota de «formosas e presumidas» as raparigas d’aquelle sitio <(x)>. [§] Chamou-se Eulalia a menina.
Como a sua infancia passou ao abrigo dos ardores e frios do clima, o alvor do rosto e mimo infantil não <desmereceram> [↑desbotaram], como acontece ás <meninas pobres> [↑raparigas] das aldeias, cuja belleza <desbota> [↑desmerece] cedo. Eulalia era as alegrias e disvelos [1 desvelos] de João Verissimo[1,] q̃ indiscretamente a ia educando como se d’ali houvesse de passar á sociedade, ás salas, ás cidades, onde a intelligencia e graças espirituaes das mulheres dão realces á formusura. Luiza, bem aconselhada pela propria ignorancia, desavinha-se com o homem <por cauza> [↑á conta] dos estudos da rapariga; e, se as palavras eram inefficazes, arrancava ás mãos de Eulalia o livro, e punha-lhe a roca na cint<u>/a\<ra>[1.]
<1§>Na<õ>/d\a [1 Não] obstante, a menina, antes dos sete annos, lia correntemente, e argumentava em
<(x) Tom. I; pag. 101.>
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arithmetica, e no mais, com Manoel, o melhor discipulo de João Verissimo.
Este Manuel era um rapaz<inho>, nascido em Rendufinho, <em condiçoens de> filho d’uma jornaleira, que morrêra quando elle <tinha> fazia um anno. Não tinha pai, p<or>/ela\ mma rasão que a mãe não tivera marido. Se entre os homens, q̃ passaram á porta da choupana, onde a jornaleira estava amortalhada, ia o pai da creancinha que chorava em um<a> [↑berço de] canastra, elle não se abaixou a tomar o orfão nos braços.
Manuel até aos cinco annos creou-se n<os>/o\ <braços invisiveis> [↑regaço] da Providencia. So esta palavra divina explica o viver d’aquelle menino, que mendig<ou>/ava\ quando ainda não sabia proferir a palavra «pão»,[1;] e dormia, <serenamte> sereno e livido como um anjo de marmore, <as> [ pr] [1 as] noites de dezembro, nos <quinteiros> [↑alpendres] dos lavradores e nos degraus dos cruzeiros.
Quando <tinha> prefez seis annos, <foi dar á> [↑appareceu na] Povoa em companhia de outros rapazinhos que iam á <aula> [↑lição], com os seus <saquinhos> [↑saquitéos] á bandoleira, onde levavam [↑o alphabeto,] a cartilha, a sentença, [↑o pão da merenda, e] 1o 3tinteiro 4de 5chifre 2atarrachado, com penna de pato <, e o pão da merenda>. Manoel seguira-os embellezado n’aquelles utensis escolares<,>/.\ <e mais q̃ tudo pasmado de os ouvir na <gramatica> taboada.> Viu-<os>[↑os] entrar na escola, e foi depoz elles, apezar de o empurrarem com desabrimto.
– Que é isso?! – perguntou o mestre.
– É este rapaz, q̃ não é da lição, e quer entrar – respondeu um dos discipulos.
– Deixem-no entrar! Quem lhes deu [↑a vocês] o atrevimento de <p>/r\epellirem quem <em> [↑quer entrar] na ma caza? Vem ca, rapaz!
<Manuel> [↑O pequeno] entrou airosamente, bem que as lagri-
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mas lhe <derivassem> <[tremelassem]> [↑apontassem] <no rosto> [↑nas palpebras].
– Por que choras? Aquelles bateram-te? – tornou <João Verissimo> o professor.
O pequeno olhou contra elles, e abafou o queixume. Via-se q̃ o habito de soffrer e chorar sem <queixar>[↑carpir]-se lhe havia extrahido nas lagrimas <a>/o\ <peçonha> [↑agro-doce] da vingança.
– Que queres tu? donde és?
– De Rendufinho.
– Quem é teu pai?
– Não sei. Minha mãe <ja> morreu ha mto… [Deus lhe falle n’alma.]
Um moço ja espigado, que o conhecia, <disse> [↑explicou] ao mestre que o rapazito era filho d’uma jornaleira <1[↑la de <*certa >/sua\ caza ]>, e andava ás esmolas, e a dormir por <la> [↑ahi], sabia Deus onde.
– Mas admiro que teu pai [↑,o rico alferes de Cima-de-Villa,] não saiba onde Deus quer que durmam os pobrezinhos! – disse o mestre em tom agastado – Teu pai é um lavrador <rico> [↑de mão cheia], e este menino orfão e esfarrapado era filho de uma jornaleira que vendia por baixo preço o seu suor a teu pai… Ah! ricos, ricos...!
E, voltando-se para o rapazinho, continuou:
– Tens fome? queres comer?
– Não, senhor; ja comi caldo na casa do Eiró. Vou la todos os dias á esmola.
– Então que queres?
– Queria apprender a ler.
João Verissimo deteve-se alguns instantes a contemplar o menino. Neste exame silencioso, não se cuide q̃ o mestre lhe andava <espreitando> [↑devassando] as bossas da intelligencia, ou a <ver> [↑descortinar] se na fronte escampada lhe prelusiam brilhantes destinos. Nada d’isso. No q̃ elle scismava era em vestir e alimentar a creança, – precisoens q̃ elle antepunha á caridade de o ensinar.
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– Senta-te ali, rapaz – mandou o mestre, apontando-lhe a extrema inferior de um dos seis bancos <dispostos a roda> [↑parallelos.]
Manuel sentou-se com tanto acahamento qta era a alegria q̃ lhe pulava nos olhos.
Ás duas da tarde, hora da merenda, João Verissimo sahiu da vasta quadra da escola, recommendando ao rapasio que se portasse com juiso, e levou comsigo o pequeno.
– Quem é este rapaz tão roto?! – perguntou Luiza.
– É um pobrinho que quer saber ler.
– Boa vai ella! – disse a precavida mulher, ja receosa das costumadas liberalidades do marido.
– Vê se lhe dás alguma coisa de merendar [– disse o mestre.]
– Tenho aqui metade do meu pão e peras da merenda – <disse> [↑acudiu] Eulalia.
– Dá-lhe o pão e as peras, filha – aprovou o pai.
A pequena foi ao seu açafatinho, <1 e> tirou de la o que tinha, e levou-o ao pequeno.
– Deus lhe dê saude – disse Manuel, recusando brandamte a esmola – eu agora não tenho fome.
2O 3mestre 1insistiu, e o rapaz aceitou; mas, em verde, não tinha fome: o jubilo de se ver na escola, como elle depois dizia, <dera>[↑posera]-lhe um nó na garganta.
– Este pequeno – disse <o mestre> [↑João] á mulher que estivera observando o caso em silencio e mal assombrada – fica por em qto comnosco.
– O quê?! – acudiu Luiza.
– Fica em nossa caza até ver se algum proprietario <abastado> [↑da Povoa] o aceita para môço, e consente que elle frequente a escola.
– E, se ninguem o quizer?
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– Quero-o eu.
– Para môço? [1 !] Temos grandes posses para <isso.> [↑ter criados…]<1—>
– Tambem não é precizo têl-as grandes, mulher. Ah! Luiza, Luiza! tomára-te eu menos ambiciosa, e serias mais feliz… Muito pobre imaginas tu q̃ é Deus! Dizes todos os dias: «Creio em Deus Pai, creador do ceo e da terra»; e receias q̃ o <p>/P\ai, autor de <tudo> [↑todas as riquezas] que <se> contem <n>o ceo e <n><1 a> terra, não tenha para esta creança um caldo e uma enxerga…
– Elle terá, eu é q̃ não… – replicou rebeldemte a mulher, que era o typo commum das christans <boçaes> das nossas aldeias, <q̃> [↑as quaes] destampam ás vezes em <distonias que demonstr> remoques <que> [de]mo<s>/ns\tra<m>/ti\vos de que1 a ironia com as coisas divinas [↑também se] encontra<-se> em espiritos broncos por onde não passou o suão ardente da duvida.
João Verissimo era bom; mas não era pusilanime com sua mulher. Em qto elle <redarguisse> [↑contradissesse], Luiza questionava; <mas> porém logo que o marido <contrahisse> [↑arrugasse] a testa, e friccionasse um beiço no outro, calava-se ella.
Assim succedeu com <a>/o\ <hospedagem> [↑agasalho] do orfão.
Alegrava-se o caridoso homem, vendo Eulalia abeirar-se do mocinho maltrapido, e fital-o com ar de compaixão.
O pequeno, olhando-a com o encolhimento do respeito, <admirava talvez o retrato> parecia adivinhar a piede q̃ inspirava áquella creatura, linda como os anjos do painel da Senhora da Assumpção, que elle vira na egreja de Sobradêllo.
<*Ter uma cama de lençol>
O mestre não dormiu bem socegado n’aquella noite, posto q̃ o dormir, quando a caride nos acalenta o somno, haja de ser dulcissimo.
1 Cronologia difícil de representar sem ser infiel à topografia:
remoques [de]monstra<m>/ti\vos
distonias que demonstr de que
A escrita suspendeu-se em demonstr, o autor voltou atrás para reformular a frase e substituíu distonias por remoques, planeando manter o pronome relativo e fazendo retornar o verbo cancelado (remoques que demonstram). Mas, depois de o ter escrito na sobrelinha, desiste da oração relativa e substitui-a por um simples adjectivo, cancelando que, emendando demonstram para demonstrativos e continuando a frase na linha (de que…).
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– Que tens q̃ não <dormes> pegas a dormir, João? – perguntava Luiza estranhando-lhe a vigilia – Em q̃ [↑deanho] pensas?
– No rapazinho.
– O rapazinho está a dormir, homem! q̃ mais queres?
– Quero ver se lhe dou pai; ora aqui tens o q̃ eu quero, mulher.
– Se lhe dás pai? Em boa te vais metter!... Como hasde tu dar-lhe pai, se elle o não tem?... Sabes tu q̃ mais? Olha se dormes… Tu dás em doudo!...
Atilada mulher! <v>/V\oltou-lhe as costas, e adormeceu.
E elle continuou a scismar.
Á primeira luz da manhan, ergueu-se.
Era dia sanctificado.
Deixou a mulher a dormir, beijou a face da filha[1,] alumiada pela projeção da luz froixa do oratorio, orou á imagem de Jesus crucificado, e sahiu na direcção de Rendufinho.
Era [1 Era o] alvorecer de um dia amenissimo de agosto.
As musicas, que ressoa[↑va]m nos arvoredos agitados pelas quentes lufadas do sol nascente, harmonisavam com o contentamento d’aquelle obreiro obscuro [↑e feliz]. Ali não ia o desherdado, raivando contra a sociede que o deixára desbalisar do seu patrimonio. Como se tivesse pejo e escrupulo de confessar sua pobreza em meio dos milhares de explendidas obras, o homem, q̃ tinha a riqueza d’uma filha, relançava os olhos por de sobre os zimborios e torres das cazas ricas, em qto os olhos da alma iam embeve<cidos>/cer\[-se] no sorriso da filha adormecida[1.]
[9]
E o que elle não via ao dobrar uma collina donde se enxergava [1 enxerga] entre verduras <alvejar> a egreja de Rendufinho <!> a alvejar!
Sobranceando a Povoa, negrejava o castello de Lanhôso, erecto em rocha, recortado de ameias, lardeado de bastioens, golpeado de seteiras, ali perpetuado, rebatendo as injurias de nove seculos, imagem, symbolo da <nação selvagem> [↑raça forte] q̃, ao passar por lá, empedrou um dos seus gigantes, como vigia eterna das geraçoens q̃ se desforçam a camartelo da sua vergonhosa [1 desvergonhosa] afeminação. Ali <encerrou> o primeiro Affonso <a mãe, quado lhe disputava com o valido a coroa>.2
[9v]
… a mãe, que tão pouco o parecia
… em ferros asperos atava (.)
<acusando-a de incastamente>
[9]
<Ali,> [↑La foi q̃] D.Rodrigo Gonçalves Pereira de Berredo, esposo atraiçoado por um frade de Bouro, pegou o fogo pelos quatro angulos, <queimando> [↑assando] a esposa, o frade, os criados, as bestas, tudo, criminosos e innocentes, desde a adultera até ao frade, <que provavelmente> <[↑provavelmente]> <morreu martyr> [↑o frade [↑talvez] innocentissimo], embora o <cond> genealogico D. Pedro, conde de Barcellos, [↑mentiroso como todos os linhagistas][1,] referindo o caso, duvide da innocencia do monge.
<Ao longe, surtiu> [↑Ao nascente, surgia] d’entre copas de carvalheiras seculares a Torre dos Godinhos, onde vivera o conde D. Fafes Serrazim de Lanhoso, o rico-homem, pai de D.Godinho, e avô de D. Fafes Luz, fundador de Fafe. Não vá o leitor, enganado por mim, <em> á cata da torre solarenga dos Godinhos. Ha menos de trinta annos que o paço feudal foi <arrazado> aluído. Da pedra enegrecida por dez seculos, [↓ e talvez esquadriada por mãos de suevos, ] fez-se a parede de um chavascal, e uma cozinha de caza alagartada de azulejos, onde provavelmte mora e ingorda um sugeito que se serve com os ultimos descendentes de D.Fafes.
(.) Camoens, Lus. [↑Cant. iii,] est. xxxi e xxxiii.3
2 Os dois versos citados encontram-se no verso da tira, conforme indicação aqui dada no texto: (Veja no verso desta tira.)
3 Na 1ª ed. a indicação da fonte vem em nota de rodapé.
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Ao sul, em S. Martinho, <do Campo>, <cam> <avultava> [↑campeava] <o>/a\ <solar> [↑Torre] dos Motas. A<l>li vivera Mem de Gundar, coevo do conde D.Henrique <, e>/. E\, de fronte, <a Torre> [↑ao norte, o solar torreado] dos Machados, edificad<a>/o\ por aquelle D.Martim <Machado>, que lascou a machado as portas de Santarem, quando Affonso Henriques desengastou do crescente sarraceno <aquelle diamante> [↑a tão disputada joia] da sua coroa vacillante.
Estas referencias historicas decerto não preoccupavam o animo de João Verissimo. Os monumentos da velha Galliza, aquellas reliquias dos netos de Pelagio não lhe proponderavam tanto no espirito como os seis annos da creança que não tinha mãe, e não sabia a quem dar nome de pai.
Á entrada de Rendufinho, o <mestre-escola> [↑professor] bateu no portal [↑da caza] de um padre q̃ havia sido seu condiscipulo em latim.
– Madrugaste, João! – disse o clerigo – A que vens?
– Á procura do pai d’um esfarrapadinho da tua freguezia. Conheces um pequeno de seis annos, q̃ pede esmola, e é filho d’uma jornaleira, falecida ha cinco annos, que trabalhava em caza do Tiburcio de Cima-de-Villa [1 Cimo-de-Villa]?
– Era a Carlota das Courellas; conheço o rapazito – respondeu padre Bento [com desnatural empeço na voz.]
– Sabes quem seja o pai d’elle?
– Sei o que <ella dizia> [↑por ahi se disse] a tal respeito. Essa mulher veio ainda mto nova servir em nossa caza; mas ahi <aos> [↑pelos] dezoito annos, pegou de doudejar, e minha mãe impontou-a. Qdo ella appareceu com o filho, disse mta
[11]
gente que o pai da creança era o Tiburcio de Cima-de Villa [1 Cimo-de Villa]. Eu não sei decerto...
– Pois claro é que tu <decerto> [↑ao certo] não podes saber isso, padre Bento; – obtemperou João Verissimo – porém, dizes tu que é voz publica ser Tiburcio o pai do pobresito...
– Sim… é o q̃ corre – affirmou o padre embaraçado, <pelo q̃ quer q̃ fosse> [↑não sabemos porquê,] talvez escrupulo de [1 do] consentir n’um boato <calunioso> [↑duvidoso].
– Ora olha tu – voltou <João Verissimo> [↑o outro] – que eu increpei asperamente o Tiburcio, quando o filho d’elle, q̃ é meu discipulo, me disse que o rapazinho <dormia> [↑pernoitava] sabia Deus por onde! Ha presagios que so se explicam por influxo providencial!... Pois sabes tu q̃ mais? Estou resolvido a procurar o Tiburcio, e a dizer-lhe que proteja aquelle menino, embora o não tracte como filho. Que te parece?
– Parece-me q̃ não fazes nada… [↑– acudiu sem detença o padre –] [Deixa-te d’isso… q̃ não lhe apanhas vintem…]
– Se <eu> nada fizer, é por que a opinião publica está enganada a respeito da filiação do rapaz. Se o Tiburcio é pai, hade attender-me, heide tocar-lhe o coração. Que os homens são máos; isso é da Biblia; mas que os pais são bons, isso é do ceo, é graça que de la desce com as almas innocentes das creancinhas. Succeda o q̃ succeder, la vou.
– <Deixa-te disso> [↑Não fazes nada], João… – <replicou> [↑insistiu] o padre – Olha q̃ o Tiburcio é um <bruto de mão cheia> [↑selvagem], que não te percebe, se la fôres com discursos e rethoricas. Manda-te logo dizer o q̃ pertendes [1 pretendes] pelo claro; e, assim q̃ tu lhe fallares em filho natural, <manda-te pôr no olho da rua> [↑nem o diabo tem mão n’elle]. Verás q̃ te manda pôr no olho da rua...[1.]
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– E eu<,> obedeço-lhe, sacudindo<-lhe> na [↑sua] testada o pó dos [↑meus] sapatos[1.]
– Toma o meu conselho… [↑– volveu o padre –] Pede-lhe uma esmola para vestir o rapaz; mas não lhe dês a perceber que o julgas pai; e, mais ao diante, pode ser que se te ageite boa occasião de lh’o ir <apreze> inculcando como filho.
– Acho-te rasão, padre Bento – condescendeu o mestre<-escola>[↑, reflectindo] – Tenho assim dois meios por onde chegarei ao meu proposito: se é pai, fallo-lhe ao coração; se não é, movo-lhe a caridade…
– Justamente.
– E por um dos dois sentimentos conseguirei que elle o proteja, que o recôlha, e o alimente e o vista, <até que> [↑em qto] eu <o tenha> [↑o vou] habilitando para o negocio. Está decidido. Abraço-te pelo prudente conselho, e cá vou. O q̃ passar, contar-t’o-hei<1.>
<– Pois sim; vem depois almoçar comigo, q̃ eu vou dizer missa.
– Pois se vais dizer missa, irei primeiro á vila, e depois> <Podes aparec> <era> <E bom principiar <que>/por\>
– Pois vai. Torno a recommendar-te q̃ nem por sombras [1 sombra] lhe deixes desconfiar q̃ tu suspeitas q̃ elle seja o pai do rapaz…
– Intendi, padre Bento[↑, intendi.] Ate logo.
II
Tiburcio, mais conhecido por “alferes de Cima-de-Villa[1 Cimo-de-Villa]” encontrou João Verissimo no caminho da egreja, para onde ia assistir á missa. Abraçou cordealmente o mestre de seu filho Jeronimo, e quiz saber q̃ novidade o levava a Rendufinho.
– A fallar com vmcê sobre uma obra de caridade.
– Alguma esmola para as obras da Senhora d<o>/a\ <Porto ?> Abbadia?
– Não, senhor. Eu não peço para obras de pedra; venho pedir para o edificio d’uma alma.
A mulher de Tiburcio, q̃ também ia, intendeu q̃ João Verissimo pedi<a>/ce\ para uma alma do purgatorio; mas o marido, de natureza menos subtil [↑e pia], nem sequer <intendeu> [↑percebeu] isso.
– Ora explique-se la, padre João! – voltou o lavrador – Eu ca, desde q̃ o vi de coroa e sobrepeliz a cantar aos defunctos, intendi q̃ você era padre, e custa-me a chamar-lhe outra coisa! A fallar <a> verdade, ó sôr João, você fez boa asneira em se cazar! Podia estar a esta hora abbade, com o seu passal, com o seu patrimonio, e levar boa vida![1;] Assim[1 assim], está pobre, a aturar canalha, cazado, com filhos… Quantos tem?
– Tenho uma menina, snr. Tiburcio.
– Está feito; do mal o menos; podia ja ter cinco ou seis, e dar-se ao demo para os sustentar.
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– Anjo bento! ao demo, não! tens palavradas, Tiburcio! – atalhou a mulher, tregeitando como escandalisada da impiedade.
– Pois então? – repizou o alferes de Cim<o>/a\-de-Villa – onde havia de ir este homem buscar pão para sustentar seis filhos?!
– Aos celleiros onde vão as aves que não fiam nem tecem, ás searas de Deus, <pois> [↑q̃] tão pai é de um como de seis filhos do pobre [– respondeu João Verissimo.]
– Áme<m>/n\, – apoiou a senhora Maria do alferes.
– Isso é bom nos sermoens, padre João – refutou ironicamte Tiburcio – mas, cá no amanho da vida, não péga. Os pardaes verde é q̃ não tecem nem fiam, e sustentam-se das sementeiras; mas de vez em quando levam a sua chumbada, [↑q̃ se regalam.] Responda lá a isto, se é capaz…
– Tem bastante philosophia a replica… – disse entre si João Verissimo.
– Então que quer o sôr João ? – volveu o lavrador — A obra de caride que é? Diga lá; se for <*cousa> objecto que se possa fazer, faz-se.
Tinham entrado ao adro da egreja, e ja a sineta dava o ultimo signal <da missa.> .
– Conversaremos depois da missa – disse o <mestre-escola> professor.
O celebrante era padre Bento Ribeiro.
Ao primeiro dominus-vobiscum, o <padre> [↑levita], voltado para os fieis, mostrava um rosto seraphico, um quebrant<ar>/o\ de olhos inlevados em asceticas visoens, um mavioso de voz tremente da piedosa commoção com q̃ chamava o Senhor a <†> [↑ser] parte nas almas d’aquella christandade.
João Verissimo edificara-se d’aquelle mystico aspeito, ao mmo tempo que Tiburcio sorria pa
[15]
elle de esguêlha.
Ao orate-fratres, o mesmo gesto unctuoso do padre, a mma edificação do mestre<-escola>, e o mmo sorriso esconso <–> do alferes.
– De q̃ se ri este homem?! – disia de si comsigo João Verissimo[1.]
Ultimad<a>/o\ o <augusto> [↑sancto] sacrificio, os dois sahiram juntos.
– Quem vê aquella cara de sancto de pau [↑de bucho] não <diz> [↑atrema com] o velhaco que ali está! – disse Tiburcio.
– A cara de qm? – perguntou o outro[1.]
– De qm hade ser?! A do padre Bento. Pois [1, pois] você não o conhece?!
– Conheço ha doze annos, desde a escola.
– E então que lhe parece o tal amigo?
– Um homem inoffensivo e um bom clerigo.
– Bom clerigo! um seductor de cachopas, bom clerigo! Ah! então você, sor João, <é tolo, ou> [↑se o não é,] faz de mim tôlo… [↑Para cá vem barrado!...] Que elle engane com as suas imposturas a gente estupida, isso é dos livros; mas você que estudou dez annos, pelos modos, chamar áquillo bom clerigo, isso hade perdoar q̃ lhe diga q̃ é pagar bom burro ao dizimo…
Como a snra Maria do alferes se avisinhasse dos dois e ouvisse a pratica deprimente dos creditos alheios, admoestou o marido a não murmurar de padre Bento<.>/,\<[por uzar o habi]>[↑que era sagrado pelas ordens] [1.]
<Aceita deixar a Deus <julgar os seus> esmolas e não publicar os peccados>
– Da coroa para cima – emendou o alferes, com <philosophia> [↑gracejo] de cabo de esquadra.
– Anda d’ahi! –<disse> instou a <sancta>[↑boa] mulher com medo de maior sacrilegio.
– Pois vamos la almoçar, padre João – condescendeu Tiburcio – e depois fallaremos <no> [↑no] cazo que o ca trouxe; mas, a respeito da bonde do tal padre Bento, temos conversado.
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Findo o frugal almoço, e apartados ambos pa o eirado [1 eira do], João Verissimo expoz assim o seu requerimento [1 raquerimento]:
– Amigo e snr. Tiburcio, hontem entrou na ma escola um menino de seis annos, quase nu, e com cara de fome. Perguntei-lhe a q̃ ia; respondeu q̃ queria apprender a ler. Averiguei qm fosse, e d’elle e de seu filho Jeronimo<,> soube q̃ era desta freguezia, filho de uma jornaleira desta caza, chamada a <Custodia> [↑Carlota] da[s] Courella[s], ja defuncta.
O alferes interrompeu-o com uma risada secca, batendo-lhe duas palmadas nos hombros.
– Que é?! – perguntou o mestre-escola.
– Vá dizendo, q̃ eu ca vou tomando nota.
– Nota de quê?
– Vá dizendo ao q̃ veio, homem!
– Vim pedir a Vmcê que repartisse dos sobejos do seu rendimento algumas migalhas ao orfãosinho, a fim de q̃ elle possa, vestido e alimentado, estudar.
– Não tem mais nada a pedir?
– Não, sñr.
– Então, ouça la, sôr João Verissimo, e não me falle á mão. A <Custodia> [↑Carlota] das Courellas era uma raparigaça com um palmo de cara q̃ <não>[↑não] tinha inveja á mais bonita desta comarca. Veio ainda cachopa servir para caza do Antonio da Mó, que era o pai do padre Bento [↑Ribro]. Por la esteve coisa de seis annos, e não lhe faltaram rapazes remediados que a conversaram para o bom fim; mas ella <foi creada com o estudante, > não dava trela a nenhum <estudante que não era talvez> por que o estudantinho, pelos modos, ia estudando para padre e para brégeiro ao mesmo tempo. O grande cazo é que a mãe do rapaz,
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desconfiando do filho e da moça, mandou a rapariga <para> <a>/á\ mãe, com um recado de q̃ não queria em sua caza mulheres desaustinadas. A mim me disse então a mãe do estudante que pozera fora a moça com medo q̃ o filho se apaixonasse e cazasse como você fizera com a tecedeira de <S.João de Rei> [↑Geráz]. Ora a Carlota, assim q̃ soube q̃ o estudante viera de Braga a ferias, fugiu das Courellas, e aprezentou-se ao rapaz a chorar e a dizer que estava resolvida a deitar-se ao Cávado, se elle a deixasse. O <estudante> [↑tratantorio] la se desfez da rapariga com as rasoens de grande <tratante> [↑maroto] que ja era então; e ella, q̃ teve mêdo de voltar pa a sua terra, <e não> ficou por aqui a trabalhar de jornaleira <nas differentes cazas> [↑por esses lavradores], dormindo n’um cardenho q̃ minha mulher lhe deu de graça. Eu não lhe sei dizer se a rapariga era boa se má. Por ahi dizem que ella andaria melhor se esganasse o padre e se atirasse depois ao rio; mas o q̃ também dizem é que o padre Bento, ja depois que disia missa com aquella cara q̃ você lhe viu, ainda era o mesmo que a guardava dos outros<.>/,\ [↑cioso como quartão galego.] O grande cazo é que a rapariga deu á luz o filho; e, assim que este <cazo> [↑facto] succedeu, o padre sahiu da freguezia, e por la andou anno e meio a parochiar ahi para Barroso. Neste entrementes, a Carlota pegou de padecer, e morreu ethica, dizendo a qm lh’o ouviu, <q̃ fui eu> [↑– a mim e a ms algm –]<1,> que o pai do seu filho era o padre da Mó. Ora agora, ja você sabe, sôr João, a quem hade pedir de comer e vestir para o rapaz. Vá lá; <faça> bote-lhe a sua falla; veja o q̃ elle diz: e, se o patife <rec>/n\ão der nada, volte por <ca> [↑aqui], e <conte como e que>[↑fallaremos.]
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João Verissimo estacou a olhar com spasmo [1pasmo] < de idiota> de emparvecido para o lavrador. <Não respondeu> Queria refutar a historia por lhe parecer incrivel que padre Bento o não desviasse da porta do alferes, se elle era o pai da creança, o deshonrador da mãe, o <scelerado devasso> [↑crú libertino] que desamparára os dois. Não cabia isto nos limites que elle assignalára ao mal, ao peccado, á p<re>/er\versidade homana. Mas com que argumentos combater a accusação de Tiburcio? Dir-lhe-ia que o padre lhe <attribuia> [↑assacava] a paternide do orfão? Isso seria levantar estrondoso escandalo, sem d’ahi provir algum proveito á creança. E, de mais, a historia da infeliz Carlota, referida tão singelamente pelo alferes, offerecia caracter verdadro e irrefutavel; e, por isso mmo, o assombro de João Verissimo era natural. E, recordando-se das instancias do padre <no tocante a> a fim de q̃ nem por sombra <attribuisse> [↑fallasse] a Tiburcio <o put> [↑<em> no] filho, com<binou>prehendeu melhormente a cautella velhaca, mas ainda assim <estupida> [↑indiscreta], do seu condiscipulo.
Neste em meio, o lavrador esperava que o mestre escola dissesse alguma coisa.
– Vossê ficou estarrecido, padre João! – exclamou o alferes, abanando-o pelos hombros.
– Profundamente magoado, snr Tiburcio... – respondeu o mestre, enxugando da fronte as camarinhas do suor.
– Então já percebeu por que eu me ria da cara do padre? Fique intendendo q̃ está ali o maior <patife da comarca> [↑tratante do reino], e que aquelle homem não <está>[arde] ha mto na inquisição por q̃ não sei q̃ governo é este que não deixa queimar os <hereges> <os> padres sem vergonha nem temor de Deus. Olhe q̃ ja d’aqui foi uma queixa ao arcebispo contra elle; o padre foi la [↑chamado], e com aquellas ca<retas>[↑ramunhas] <piedosas> [↑de santarrão] q̃ você lhe viu, enganou o arcebispo, e voltou para ahi, a <pregar> [↑esbravejar] contra os calumniadores.
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Mas deixe-o andar, e espere-lhe pel<o>/a\ <fim> [↑volta…]
– Á vista do que me diz, não sei que faça, meu amigo [↑ – tornou o professor indeciso – ] Eu não sei como heide pedir a tão máo homem q̃ proteja o pobre rapazinho…
– Olhe, sôr João, eu não dou duas razas de milho pelo dote q̃ esse <vilão> <[↑<velh> homem] hade dar ao filho; mas, apezar de tudo, digo-lhe q̃ vá ter com elle [↑, q̃ nada se perde. ] Vossê sabe pintar as coisas a preceito. Veja se lhe toca no interior. O homem acabou de <comer> [↑tomar] a [↑sagrada] hostia ha pouco; pode ser que o <diabo> [↑demo] lhe fugisse do corpo. Aproveite a maré; que elle, depois do meio dia, tem dentro de si o diabo a nadar em vinho<!>/;\[1; e] [↑la por horas mortas lê uns livros que esconde de todos os padres q̃ la vão.] Olhe q̃, para ter tudo, até borrachão se fez; mas é tão hypocrita, que se prega a dormir toda a tarde, e diz á<s> <irmans>[↑parva da mãe] que está a fazer oração mental. Ah! bom fueiro!...
João Verissimo despediu-se com o intento de recolher-se, e dar como encontrado o pai do orfão n’aquelle altissimo e soberano Espirito que lh’o encaminhára a caza.
Tinha pejo de se encontrar rosto a rosto com padre Bento. Era elle o invergonhado! Ha almas delicadissimas que levam até <esta> semelhantes extremides, não sei se o pudor de sua <*ver>/pur\eza, se a compaixão dos vicios alheios.
Desandou, pois, caminho da Povoa, por um atalho desencontrado da caza do padre; mas foi pontualmte por ahi que o padre lhe sahiu ao encontro na revolta d’uma barroca. O levita, que uma hora antes consagrava o corpo e o sangue do mansissimo holocausto da redempção, ia agora de clavina, correão, <sa>ca4 [↑rede [1 e rede]] <e> [,] polvorinho, e matilha de <cães> perdigueiros, <matar> [↑espingardear] as aves <na>/da\ serra, feril-as, afogal-as entre os dedos q̃ exalçaram a hostia, estrangu-
4 <sa>ca : o autor esqueceu o cancelamento da última sílaba.
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lal-as n<os>/a\ <atilhos> [↑correagem] da bandola, e insanguentar <os dedos> [↑as mãos] que levava ainda fresc<os>/as\ d<o>/a\ <vinho transubstanciado no sangue de Jesus> [↑agua lustral do tremendo sacrificio.]
Ao dar de cara com o antigo condiscipulo, exclamou um tanto <*arrel> enfiado:
– Como vi que te demoravas, deixei la recado pa me desculpares, por q̃ está á ma espera o abbade de Aguas-Sanctas.
– Pois então não te demores, que eu tambem, pr temer o calor, q̃ ja é grande, metti por este atalho, onde ha mais sombra – disse serenamte João Verissimo.
<Padre Bento, se *receava q̃ o mestre-escola>
– Então que fizeste? Ja agora dize o q̃ passaste.
– Não fiz nada.
– Não quer saber de historias, eim?
– Contou-me uma...
– Uma quê? uma moeda de oiro?
– Não: uma historia de lagrimas. Disse-me como a <mãe do orfão> [↑Carlota das Courellas] foi primeiro casta e bella, e depois deshonrada, e mãe, e abandonada [1 abandonada, por fim]. Contou-me tambem que o pai do orfão mendicante era um padre…
– Um padre! – atalhou o outro, batendo maquinalmte no chão com a cronha da espingarda.
– Sim, um padre. Eu não me espantei. Os sacerdotes christãos, nos primeiros e melhores seculos do catholicismo, tinham filhos, e amavam-os. Sto Agostinho estremecia uma filha que teve da sua companheira do lar, não sei se esposa, se amante. Muitos bispos e grandes prelados portuguezes houveram filhos, que educaram e legitimaram com licença dos reis e dos papas. Os papas tambem amaram os